quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O Grotesco e o Sublime na Poesia de Augusto dos Anjos

Palestra proferida pelo nosso acadêmico Anderson Braga Horta no último dia 13 de novembro, na Associação Nacional de Escritores - ANE, em Brasília, em homenagem ao Centenário de Morte de Augusto dos Anjos. 


Num 12 de novembro, há cem anos, morria o poeta do Eu, o visionário Augusto dos Anjos, notável entre os grandes. Vejamos alguns pontos de sua brevíssima trajetória:

20 de abril de 1884: nascimento no Engenho Pau d’Arco, no atual município de Sapé, Estado da Paraíba.

1907: bacharela-se pela Faculdade de Direito do Recife.

1910: casamento com Ester Fialho.

1912: publicação do Eu. Postumamente, organizada por seu amigo Órris Soares, saiu nova edição, ampliada, com o título Eu e Outras Poesias. 

Professor, lecionou em diversos estabelecimentos do Rio de Janeiro. Nomeado diretor de um grupo escolar em Leopoldina, os últimos meses de vida passa-os nesta cidade mineira, onde sua memória tem sido sempre cultuada. É patrono da Academia Leopoldinense de Letras e Artes.

12 de novembro de 1914, 4 horas da madrugada: morre de pneumonia, aos 30 anos de idade –tão pouca vida, mas tão suculentos frutos!–, sem vislumbrar a glória que circundaria o seu nome, em breve tempo. 

Singularizou-se por uma metrificação tensa, mas marcadamente rítmica, de musicalidade própria, e linguagem incomum, com vocabulário tomado em boa parte às ciências naturais. Poeta filosofante, metafísico, perquiridor do eu, inquisidor da origem e da finalidade do homem, foi dos mais altos de nossa língua. Para homenageá-lo, no centenário de seu desaparecimento, não vamos relembrar-lhe a sofrida vida, nem vasculhar-lhe a obra tão extensa e intensamente estudada. Vamos destacar alguns dos aspectos do dualismo que permeia o seu pensamento poético, particularmente o pêndulo entre o grotesco e o sublime, e apreciar a alta tensão de sua poesia à luz de realizações notáveis sobre esse fulcro.

Partamos da conceituação dos termos. O sublime, na definição dos dicionários, é o páramo da perfeição em termos de valor moral, intelectual ou estético, é o superlativamente belo, é o esteticamente perfeito. Já o grotesco (ou grutesco), na acepção que atende ao propósito desta homenagem, é o disforme, o ridículo, o extravagante; a animalidade inferior; o oposto do sublime.

Acerca do grotesco, entretanto, convém que se diga algo mais. Nesse sentido, valha-nos o estudo introdutório que Fernando Mendes Vianna, poeta de alta voltagem, fez para as traduções do autor das séries La Légende des Siècles (feitas por nós ambos e por José Jeronymo Rivera, e estampadas em O Sátiro e Outros Poemas – Galo Branco, Rio, 2002). Nesse magnífico ensaio, intitulado “Victor Hugo – Duzentos Anos de Poesia”, o capítulo final é dedicado ao Prefácio do Cromwell, que Fernando exalta e resume. Eis o excerto que nos interessa para o momento:

Com o cristianismo “a poesia dará um grande passo, um passo decisivo, um passo, comparável a um terremoto, que mudará a face do mundo intelectual”. Ela começara a fazer como a natureza, a misturar em suas criações – sem no entanto confundi-las – a sombra e a luz, o grotesco e o sublime; em outras palavras, o corpo e a alma, a besta e o espírito; pois o ponto de partida da religião é sempre o ponto de partida da poesia. Surge então um tipo novo que se introduz na poesia. Esse tipo é o grotesco. Segundo Victor Hugo, trata-se do “traço fundamental que separa a arte moderna da arte antiga”. “É da fecunda união do tipo grotesco com o tipo sublime que nasce o gênio moderno.” Não que não existissem elementos grotescos na literatura antiga. “Os tritões, os sátiros, os ciclopes estão entre os grotescos; e as Sereias, as Fúrias, as Parcas, as Harpias.” ....
No pensamento dos modernos .... o grotesco tem um papel imenso. Está em tudo; por um lado, cria o disforme e o horrível; pelo outro, o cômico e o bufão.”
A propósito desse louvor do feio (em contraposição ao belo e sua idealização unilateral nos princípios artísticos tradicionais, em que o belo e o feio são antípodas), a lição será bem aprendida com o uso do horroroso em poemas como “La Charogne” de Baudelaire. ....
Tanto quanto o belo horrível, o uso do bizarro foi também dos hábitos de Charles Baudelaire. ....
.... “Seria exato dizer que o contato do disforme deu ao sublime moderno algo mais puro, mais grandioso, mais sublime enfim que o belo antigo.”
Prossegue Victor Hugo: “O belo só tem um tipo; o feio tem mil.” Sobre essa multiplicidade de modelos do feio, ressalta o significado da feiúra: “O belo, falando humanamente, é apenas a forma considerada no seu relacionamento mais simples, na sua simetria mais absoluta, na sua harmonia mais íntima com a nossa organização. Também nos oferece um conjunto completo, mas restrito como nós. O que chamamos o feio, pelo contrário, é um detalhe de um grande conjunto que nos escapa, e que se harmoniza não com o homem, mas com a criação inteira. Eis por que nos apresenta sem cessar aspectos novos, mas incompletos.” ....
Tudo demonstra, na época dita romântica, sua aliança íntima e criadora com o belo. Até as mais ingênuas lendas populares explicam às vezes, com um admirável instinto, esse mistério da arte moderna. A Antigüidade não teria produzido A Bela e a Fera.” (Pela segunda vez Hugo refere-se ao aspecto bestial e bestialmente grotesco do homem; mas no sentido de crer numa superação da separação entre o belo e o grotesco como está nessa lenda.)

Não deixa de ser curioso falar de dualismo relativamente a um pensador marcado por um monismo evolucionista, autor de uma poesia povoada de mônadas e da “substância universal”. Vejam-se, a propósito, os sonetos “Sonho de um Monista” (“dentro da alma aflita / via Deus – essa mônada esquisita – coordenando e animando tudo aquilo!”), “Apóstrofe à Carne” (“Carne, feixe de mônadas bastardas”), “Agonia de um Filósofo” (“o império da substância universal”), “Último Credo” (“Creio, como o filósofo mais crente, na generalidade decrescente / com que a substância cósmica evolui”) ou o final da segunda parte de “Revelação” (“Ah! Sou eu que, transpondo a escarpa angusta / Dos limites orgânicos estreitos, / Dentro nos quais recalco em vão minha ânsia, // Sinto bater na putrescível crusta / Do tegumento que me cobre os peitos / Toda a imortalidade da Substância!”) . Não nos escandalize, aí, uma contradição em termos; notemos, antes, que o paradoxo é aparente, pois ao princípio único fundamentador de toda a realidade segue-se um pluralismo (ver o soneto “Vítima do Dualismo”) que, todavia, há de voltar à singularidade, qual o expressa o Poeta em “Louvor à Unidade”:

Escafandros, arpões, sondas e agulhas
Debalde aplicas aos heterogêneos
Fenômenos, e, há inúmeros milênios,
Num pluralismo hediondo o olhar mergulhas!

Une, pois, a irmanar diamantes e hulhas,
com essa intuição monística dos gênios,
À hirta forja falaz do ære perennius
A transitoriedade das fagulhas!”

– Era a estrangulação, sem retumbância,
Da multimilenária dissonância
Que as harmonias siderais invade...

Era, numa alta aclamação, sem gritos,
O regresso dos átomos aflitos
Ao descanso perpétuo da Unidade!
Ao falar de grotesco, falamos, pois, extensivamente, de dualismo, oposição e/ou complementação matéria-espírito, belo-feio, sutil-grosseiro; do eu individual, sim, mas, sobretudo, do coletivo eu de nossa humanidade. Síntese no primeiro quarteto de “Revelação, II”:

Treva e fulguração; sânie e perfume;
Massa palpável e éter; desconforto
E ataraxia; feto vivo e aborto...
– Tudo a unidade do meu ser resume!

O dualismo, seja dito de passagem, é responsável por uma fagulha imperecível, o verso
Monstro de escuridão e rutilância,
inscrito no primeiro quarteto de “Psicologia de um Vencido”.

Não poderiam faltar a nossa exemplificação os versos mais popularizados de Augusto dos Anjos (embora se situem aquém de suas mais sublimes composições), os “Versos Íntimos”:

Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável, 
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
O Autor, nesse soneto –e em tantas outras peças magníficas–, transformou uma coisa horrenda num artefato de beleza. É verdade que, se em geral ele parte do grotesco para transcendê-lo, e nos melhores momentos atinge o sublime poético, tal não ocorre neste poema. Temos, aqui, o que chamo soneto de efeito, isto é, o construído com imagens e conceitos extravagantes ou chocantes que, se não dão o salto para a sublimidade, desembocam, todavia, num final de impacto. Contribuem para isso, no caso, a estranhidade da idéia, o paradoxo, o ar casual de uma palavra dirigida diretamente ao leitor (“Toma um fósforo. Acende teu cigarro.”), a contundência conceitual, tudo isso num arcabouço rítmico-lingüístico musicalmente perfeito. Não acredito que o Poeta professasse verdadeiramente a filosofia do escarro...

Diria que o horrendo está como que programaticamente inscrito já no primeiro poema do Eu, o “Monólogo de uma Sombra”, em que, se me perdoam a manipulação dos versos, se afirma na própria “ânsia dionísica do gozo” uma “necessidade de horroroso”... Augusto se identifica (sempre exclamativamente!) como “O Poeta do Hediondo” em versos particularmente impressivos:

Sofro aceleradíssimas pancadas
No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas!

Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neuronas acordadas!

Quanto me dói no cérebro esta sonda!
Ah! Certamente eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto...

Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!
Adiante, confirma-o neste quarteto de “Minha Finalidade”:
Predeterminação imprescriptível
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrível!
Às vezes o nojento e o sublime, o asqueroso e o divino aparecem lado a lado, como no “Solilóquio de um Visionário”:

Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto.

A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo!

Vestido de hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...

Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!
É forte o contraste entre os quartetos e os tercetos, nestes quais a vocação para o alto se revela claramente superior ao lastro da matéria. Desse tipo de contraste soam-me ilustrativos também estes dois sextetos de “Poema Negro”:

A desagregação da minha Idéia
Aumenta. Como as chagas da morféia
O medo, o desalento e o desconforto
Paralisam-me os círculos motores.
Na Eternidade, os ventos gemedores
Estão dizendo que Jesus é morto!

Não! Jesus não morreu! Vive na serra
Da Borborema, no ar de minha terra,
Na molécula e no átomo... Resume
A espiritualidade da matéria
E ele é que embala o corpo da miséria
E faz da cloaca uma urna de perfume.
Com o Lamento das cousas, atingiu à perfeição. É um soneto formidável, dos maiores da língua portuguesa; grande pela idéia predominante, grande pela verdade científica, grande pelo sentimento doloroso, grande pela estrutura. Exagero? Lede comigo” (transcrevo, concordantemente, do “Elogio de Augusto dos Anjos”, de Órris Soares):

Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos
O choro da Energia abandonada!

É a dor da Força desaproveitada
-- O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza...
Da luz que não chegou a ser lampejo...

E é em suma, o subconsciente ai formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!
Às vezes, é verdade, em vez desse dualismo que temos examinado, e em vez do tom pessimista da generalidade dos poemas, o Poeta é puro lirismo, é pura espiritualidade, e é preciso também exemplificá-lo, ao que bem se presta o segundo dos “Sonetos” ao pai, estes maravilhosos versos com a dedicatória “A meu Pai morto”:
Madrugada de Treze de Janeiro.
Rezo, sonhando, o ofício da agonia.
Meu Pai nessa hora junto a mim morria
Sem um gemido, assim como um cordeiro!

E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando acordei, cuidei que ele dormia,
E disse à minha Mãe que me dizia:
“Acorda-o!” deixa-o, Mãe, dormir primeiro!

E saí para ver a Natureza!
Em tudo o mesmo abismo de beleza,
Nem uma névoa no estrelado véu...

Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,
Como Elias, num carro azul de glórias,
Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!
À véspera da morte, segundo o depoimento de Órris Soares, vem-lhe “a derradeira cintilação” – após o breve périplo no pluralismo da matéria, o retorno à unidade, 
“O Último Número”:

Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado,
A Idéia estertorava-se... No fundo
Do meu entendimento moribundo
Jazia o Último Número cansado.

Era de vê-lo, imóvel, resignado,
Tragicamente de si mesmo oriundo,
Fora da sucessão, estranho ao mundo,
Como um reflexo fúnebre do Incriado.

Bradei: – Que fazes ainda no meu crânio?
E o Último Número, atro e subterrâneo,
Parecia dizer-me: “É tarde, amigo!

Pois que a minha autogênita Grandeza
Nunca vibrou em tua língua presa,
Não te abandono mais! Morro contigo!”
Terminemos, nós, o nosso périplo com os quartetos finais de “Os Doentes”:

Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!
Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos
Tinham aspectos de edifícios mortos,
Decompondo-se desde os alicerces!

A doença era geral, tudo a extenuar-se
Estava. O Espaço abstrato que não morre
Cansara... O ar que, em colônias fluidas, corre,
Parecia também desagregar-se!

Os pródromos de um tétano medonho
Repuxavam-me o rosto... Hirto de espanto,
Eu sentia nascer-me n’alma, entanto,
O começo magnífico de um sonho!

Entre as formas decrépitas do povo,
Já batiam por cima dos estragos
A sensação e os movimentos vagos
Da célula inicial de um Cosmos novo!

O letargo larvário da cidade
Crescia. Igual a um parto, numa furna,
Vinha da original treva noturna,
o vagido de uma outra Humanidade!

E eu, com os pés atolados no Nirvana,
Acompanhava, com um prazer secreto,
A gestação daquele grande feto,
Que vinha substituir a Espécie Humana!
Aos que só têm olhos para o pessimismo em nosso poeta, algum bem há de fazer esse augúrio de uma nova e melhor humanidade.

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