Mostrando postagens com marcador José Jeronymo Rivera. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador José Jeronymo Rivera. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Minha luta com as palavras


Anderson Braga Horta
In: Testemunho & Participação: Ensaio e Crítica Literária.
Thesaurus, Brasília, 2005.


Palestra pronunciada na Associação


 Nacional de Escritores, Brasília, em 6.10.1998


“Lutar com palavras é a luta mais vã”, diz Carlos Drummond de Andrade num de seus mais prestigiosos e belos metapoemas (“O Lutador”, de José). Começo com a citação ilustre, não para sugerir impossíveis comparações, mas para lembrar que nem só os poetas de menor porte suam a pena para agarrar a poesia. Assumindo o risco de exagerar, diria que suam, isto é, trabalham, principalmente os grandes. Não que dispensem eles a inspiração, ou não acredite eu nessa quimera. Pelo contrário, para mim, a inspiração é fundamental. Só que dificilmente é bastante. O vero cultor da palavra trabalha esforçadamente a dádiva da inspiração, a fim de transformar o lampejo em peça inteiriça, que não se limite a sugerir suas potencialidades. Atribui-se a Samuel Johnson a afirmação: “O que é escrito sem esforço é geralmente lido sem prazer.” Escrever é cortar palavras, dizem outros autores, como o nosso Marques Rebelo, assim enfocando um aspecto particular dessa luta. Os que se contentam de escrever como falam, pontificava Buffon, no seu famoso Discurso sobre o Estilo, “ainda que falem muito bem, escrevem mal”. Epigramaticamente, como tão bem o sabia fazer, brincava a sério Mário Quintana: “O estilo é uma dificuldade de expressão.” Já que falei em Quintana, e para não deixar dúvida quanto ao sentido do trabalho ou da luta do poeta, encerro estas citações com outra jóia do Caderno H: “A beleza de um verso não está no que diz, mas no poder encantatório das palavras que diz: um verso é uma fórmula mágica.”

“No entanto lutamos mal rompe a manhã”... Entrevistado, para o Suplemento Literário do Minas Gerais, por Carlos Roberto Pellegrino (edição de 11 de março de 1970) e por Danilo Gomes (27 de novembro de 1976; entrevista reproduzida por Danilo no 1.º volume de seu Escritores Brasileiros ao Vivo, de 1979), consignei o que me parece definidor do meu processo de criação. Ampliei-o em entrevista a João Carlos Taveira (revista Literatura, junho de 1996), da qual transcrevo o trecho correspondente:

“O poema nasce quando quer. O ritmo, a idéia, a imagem, às vezes todo um verso, a semente do poema se oferece de improviso. Em geral é algo muito vago, uma nebulosa que gira na mente do poeta; mas pode ser o verso inicial, como pode ser o fecho de um soneto. Daí para a realização do poema vão algumas horas, ou dias, ou meses, e sempre muito trabalho. Quase sempre: há poemas que se oferecem meio feitos.

Não será assim com todos. Mas é assim comigo.

Em minhas reflexões sobre o poético tenho anotado que o poeta joga com dois elementos: inspiração e construção. O primeiro não se manifesta sem o segundo — seria como uma alma sem corpo. Há, todavia, poetas cerebrais que afirmam prescindir do que chamo inspiração — o gérmen dado, ou intuído. Mas até um poeta de construção, orgulhosamente intelectual e antilírico por excelência, como João Cabral de Melo Neto (‘Esta folha branca / me proscreve o sonho, / me incita ao verso / nítido e preciso’, diz em ‘Psicologia da Composição’), parece admitir, ainda que sob uma capa de ironia, algo dessa ordem, por exemplo, em ‘O Último Poema’, de Agrestes, ao dizer: ‘Não sei quem me manda a poesia’.

Não dispenso a disciplina, o lavor, o rigor na construção do poema. Mas, se não me vem espontânea a centelha, a fogueira queima em falso... ou não queima. Tentei, há anos, a via intelectual autônoma: todo dia me obrigava a escrever, a página branca diante dos olhos, movendo a pena uma experiência já ponderável do fazer poético. Fazia. Mas o poema não prestava. (Há, todavia, um truque para cutucar a inspiração, para provocar o poema: suscitar o estado de poesia pela leitura de poesia, pela audição de música, enfim, por qualquer maneira adequada à sensibilidade do poeta; ou estudar o tema desejado, meditar sobre ele e largá-lo, deixando que o subconsciente trabalhe, até emergir a fagulha detonadora.)

Assim, apesar de toda a disciplina, todo o formalismo que, com razão, me imputam, considero-me um poeta de inspiração.”

Seja como for, a luta do poeta com as palavras é uma luta amorosa.

Quanto ao poema oferecido, a que aludi numa dessas linhas, há o exemplo extremo do poema sonhado (Coleridge, Bandeira...) e o menos raro do que vem espontaneamente, já pronto, sem trabalho, esforço ou luta aparente (sem andaimes de Bilac). “Iludo-me às vezes, pressinto que a entrega se consumará. Já vejo palavras em coro submisso, esta me ofertando seu velho calor, outra sua glória feita de mistério .... Cerradas as portas, a luta prossegue nas ruas do sono.” A luta, então, não será do poeta com as palavras, mas das palavras entre si...

Permitam-me ler um poema de minha autoria, não por supostas virtudes estéticas, mas pelo que ele sugere dessa luta das e com as palavras. Intitula-se “Apoese” e está em Altiplano e Outros Poemas:
APOESE

Mudas, incriadas,
jazem no possível
todas as palavras.
Nesse limbo inscrevem-se
invisivelmente
todos os poemas
ditos, por dizer,
mais os indizíveis.
Nesse limbo se amam,
bicam-se as palavras,
numa intimidade
por nós mal sonhada.
Relações repousam
insolicitadas,
frases adormecem
de desinvocadas,
e afinal se cruzam,
crispam-se, eriçadas
na ânsia de uma língua
boca, pena, gesto.
Nesse inesgotável
lago das palavras,
onde tudo encontra
seu signo prateado,
mergulhou o Homem
e pescou sofismas,
teses, xingamentos,
jogos, alguns poemas.
Infinito é o Sonho
que, irrealizado,
dorme em apoese
nesse obscuro lago.
Não fui um poeta precoce. Minha luta com as palavras começou por volta dos 14 anos, em Manhumirim, Minas Gerais, em cujo Colégio Pio XI cursava o 4.º ano ginasial. E começou com uma fragorosa derrota. Arrebatado na espiral encantatória dos versos de Castro Alves, desejei ser poeta. No que, por sinal, seguiria o exemplo dos pais. E deitei mãos à obra. Sucedeu, porém, que, tendo tido, havia pouco, minhas primeiras lições de versificação, e não as havendo assimilado corretamente, acabei diante de um impasse: escritos os versos, punha-me a conferir-lhes as sílabas; mas, ignorando a distinção entre sílaba métrica e sílaba gramatical, não havia meio de acertar as exigências do ouvido com as exigências da “teoria”. Contentei-me, por então, com uma prosa ritmada, de que não guardo cópia, mas de que me ressoa ainda a frase inicial: “Da cachoeira ouvia-se ao longe o rugido monótono”...

A propósito, em mais de uma ocasião, tenho recordado um fato pitoresco. Meu professor de Português, competente embora, também não havia assimilado a lição... Tinha a teoria na ponta da língua, mas, não sendo poeta, faltava-lhe aquele “saber de experiências feito”; faltava-lhe, em suma, a prática do poema. Em classe, apresentando exemplos de alexandrino, escolheu, por azar, o primeiro verso do poema “A Boa Vista”, do vate das Espumas Flutuantes. E escandiu:


“E/ra u/ma/tar/de/tris/te,/mas/lím/pi/da e/su/a/ve...”


Dava treze sílabas. Errado! (Faltava-lhe o conhecimento do alexandrino arcaico, também dito espanhol.) Se forçasse a sinérese em “suave”, quebraria o galho com um dodecassílabo sem cesura francesa. Mas isso não lhe ocorreu. Ocorreu-lhe, sim, escandir o verso de trás pra frente, e do expor passou incontinênti ao fazer:

 “Su/a/ve e/lím/pi/da/mas/tris/te/tar/de u/ma e/ra.”

Deu certo (esquecida a problemática cesura)!

(Perdoe o velho mestre, aqui anônimo, a maldade repetida de lhe recordar, in absentia, um minuto anedótico. De justiça é manifestar minha gratidão, e, com cinco décadas de atraso, agora o faço, pelo devotamento, pela clareza e pelo rigor de seu magistério, a que devo o abrir de minha até então obnubilada mente aos sóis de nossa língua.)

A metrificar aprendi mesmo no ano seguinte, na também mineira Leopoldina (de Augusto dos Anjos e de Miguel Torga), onde cursei o Clássico. Enfim compreendida a lição, tentei logo um soneto. Bem sucedido, ou quase (em termos métricos...). Intitulei-o primeiro “Orvalho Celeste” e, em seguida, “Orvalho Sideral”. Terão os amigos paciência de ouvi-lo?

    ORVALHO CELESTE

 No espaço... em pranto estava o firmamento.
Os astros... eram lágrimas ardentes,
que gotejavam pelas faces quentes
do Universo. Este gemia: “Eu lamento
aquela flor tão bela, solta ao vento,
açoitadas as pétalas frementes
pelas carícias vis de vis serpentes,
beijadas pelo solo lamacento.”

E era grande, tão grande a sua dor
que, do infinito, as lágrimas caindo,
no límpido regaço iam da flor

depositar-se (oh! símb’lo de ternura!)...
seus sofrimentos, mágoas mil carpindo,
deixando-lhe no seio a jóia pura.


15 de maio do ano santo de 1950. Quase meio século. Mas deixemos de lado o tempo, que não nos deixa. Quero aproveitar essa canhestra composição, feita mentalmente, num banco de jardim, e só depois passada para o papel (do que não fiz um hábito), para lhes dar o primeiro exemplo meu de transpiração em cima da inspiração. Fiz-lhe uns retoques, logo que me senti com mais cancha, e nessa versão um pouco menos rude peço permissão para redizê-la:


  ORVALHO SIDERAL


No espaço – em pranto estuava o firmamento.
Os astros – eram lágrimas ardentes
que gotejavam pelas faces quentes
do Universo. Era do éter o lamento
por uma flor singela solta ao vento,
açoitadas as pétalas frementes
pelas carícias de cruéis serpentes,
beijadas pelo solo lamacento.
E era tão grande e bela a etérea dor
que as estrelas, rolando-se do Infindo,
a límpida corola iam da flor
buscar na Terra, e –oh! cimos de ternura!–
iam as lágrimas do céu, caindo,
brilhar na flor qual outra estrela pura!
Falei em sonetos iniciados pelo último verso. É o caso dos que fiz a partir das onze chaves de ouro sugeridas por Guilherme de Almeida (diversos poetas aceitaram o desafio, de que alguns se saíram bem, entre estes o nosso Henriques do Cerro Azul). Mas vou preferir outra ilustração. O poema “No Horto”, de 1959, incluído em Incomunicação, tinha, originalmente, no fim da primeira estrofe, este verso: “Dentro do coração somos todos românticos.” Era um terceto, assim:

Meu coração espera as oliveiras
e os pães e os peixes do milagre.
(Dentro do coração somos todos românticos.)


O poeta amigo Deodato Rivera (irmão do recém-editado e já tão festejado tradutor de poesia José Jeronymo) tanto espinafrou o indigitado verso, tachando-o de explicativo e, pois, expletivo, ou melhor, inútil, portanto pernicioso, que acabei cortando-o. Concordo que naquele contexto não fazia falta. Mas continuei gostando do verso. Tanto que, trinta e três anos depois, o engastei num soneto de alexandrinos mistos, parnasianos e arcaicos. Ei-lo:
PULSO
—Qual no espaço exterior, no antro de nossas mentes
há momentos também de sóis deliqüescentes,
de etéreos candelabros num puro azul sem rastros!
—Somos feitos da mesma seiva de luz dos astros.
—Oh, a negra cabeça da noite rola do alto...
Sermos também lastrados de queda e sobressalto...
—O pulso que na esfera mais mínima palpita
é o mesmo que lateja na galáxia infinita.
—Mas eu sinto que o peito uma ânsia azul me invade
de ser somente luz, acima, imensidade!
Sinto que há dentro em mim um eu que me transcende!
Sobe o mar interior, e no abismo que ascende
Algo vem se formando como espumas e cânticos!
—Dentro do coração somos todos românticos.

Já que, insensivelmente, fui transformando este depoimento num buquê de curiosidades, permitam-me ainda outras. Em 1954 escrevi o seguinte poema:

MANHÃ DENTRO DA NOITE
Vontade de voar para lá do horizonte,
sentir a força cósmica em meu peito,
nas vastas solidões intermundiais.
Vontade de sofrer toda a dor do universo,
para depois cristalizar num verso
as transfigurações universais.
Deve ser belo o azul naquela intimidade
que as almas gêmeas entrelaça.
Deve ser belo
sentir, flutuando, a melodia eterna
e a suprema visão do infinito,
sorrindo
na transcendente afirmação do Ser!
Ah, pudesse eu diluir-me, espiritualizado,
no mistério do espaço constelado!
Tenho medo, porém... A frialdade etérea
havia de gelar-me as canções na garganta.
E o universo, oprimindo-me o peito sombrio,
mataria a ilusão de asas partidas
que dentro de meu ser murmura e canta.
Tenho medo, e soluço.
O Cruzeiro do Sul ironiza, de bruços,
minha aflição profundamente triste.
O mundo não existe,
nesta hora longa, ao meu olhar de louco...
E eu vou compreendendo, pouco a pouco,
a beleza sublime de ser triste
e a glória incompreensível de ser louco!

              Em 1997, reaproveito a inspiração desse poema solto e construo este outro:
   ENDECHA
Ânsia louca de voar para além do imperfeito,
abrir à força cósmica o meu peito
nas vastas solidões intermundiais!
Ânsia triste de haurir toda a dor do Universo
e –semideus!– cristalizar num verso
as transfigurações universais!
Ao invés, o horizonte atro me fecha.
Velha, a planger-se, a Soluçante Endecha
chora-me a mim, como invertida fonte.
Tolhe-me o novo, em tudo oculto, o velho.
Outro éter! outra luz! outro evangelho!
.......................................................................
Vontade de voar para lá do horizonte...

Mais se vive, mais se muda de pele, mais se é o mesmo... Não obstante, transpirando sobre a inspiração de quarenta e três anos, de certo modo, produzi novo artefato. Melhor? Quantas vezes “corrigi” um poema para pior... Sorte é percebê-lo. Neste caso, porém, talvez pudéssemos cogitar de inspiração cumulativa: o fruto de uma inspiração inspirando um derivado...

Seria de esperar que um poeta, falando de sua arte, selecionasse para exemplificá-la os seus melhores poemas. Aqui, faço quase o contrário... Rendendo-me de vez ao pitoresco, lembro um soneto hendecassílabo, feito a duas mãos, à mesa de um bar, com o Deodato Rivera. Batizamo-lo de “Soneto Horrível”: “Pela noite austera badalando triste, / chora ao longe um sino, lívido ao luar. / Quanta nostalgia, quanta mágoa existe / neste seu plangente, negro badalar.” Tão horrendo, mesmo, que a tempo o devolvo ao silêncio do esquecimento. Seja-nos perdoado o delito estudantil (estávamos em 1953, em Leopoldina).

Ilustrativos, também, da tensão entre inspiração e trabalho podem ser os centões, poemas feitos mediante a recombinação de versos alheios, caso em que o segundo pólo quase se resume em transpiração...

Retomo a deixa da “Endecha” para recordar como, de tão outra maneira, não um poema, porém um punhado de poemas me serviu de espoleta para a deflagração do livro que julgo o mais bem construído dentre os meus. Em 1964-65, revoltado com a Redentora, escrevi uma série de agressivos poemas de protesto, em torno dos quais e a partir dos quais acabei ideando os Exercícios de Homem. O livro foi crescendo (chegou a ter cem ou mais composições) e, à medida que crescia, organizando-se e universalizando-se, e, à medida que se organizava, minguando em quantidade, de modo que a versão final (reduzida a cinqüenta e uma peças) funciona —assim o creio, sem maiores pretensões— como um só poema, uma espécie de epopéia moderna, uma espécie de epopéia do espírito. Dessa versão definitiva, pelo que tinham de datado, de circunstancial, de mais perecível, portanto, foram alijados exatamente os poemas-estopim, ou poemas-gatilho, em torno de vinte (além de outros que desloquei para o Cronoscópio). Serviram de catalisador, e foram sacrificados. Sob o rótulo Poemas Escritos com Raiva, ou simplesmente Poemas com Raiva, pretendo publicá-los na reunião de livros intitulada Fragmentos da Paixão.

Minha poesia se vale, indiferentemente, do verso medido e do verso livre, das formas fixas e das imprevisíveis, do antigo e do moderno. Como, porém, o tempo que nos resta não comporta outras leituras, escolho para encerrar esta conversa um poema recente, vazado na forma do que deu início à minha aventura poética: um soneto decassílabo às antigas. Leio:


 LASCIVA EMBRIAGUEZ

   Lasciva embriaguez da poesia,
da música e do amor! Uma só cousa
sois vós para quem quer, para quem ousa
o mergulho na vaga fugidia
que é o impulso da vida. Fugidia
mas constante, um arder que não repousa,
que desconhece o falso estar da lousa,
que funde o ser na sempiterna via.
Ó divina embriaguez, toma-me os passos
e deixa-me sonhar pelos espaços
do Ser, indiferente à realeza
da fortuna e da glória, inteiro e salvo
de toda circunstância, que é teu alvo
o coração fremente da Beleza!

Obrigado, amigos.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Da privilegiada formação de um grande poeta-tradutor

Anderson Braga Horta
Academia Brasiliense de Letras,
em 20 de março de 2014.

Conheço José Jeronymo Rivera, e de então nos fizemos amigos, desde os remotos tempos de nossa adolescência, nos bancos escolares, em Minas Gerais.

Em 1950, Leopoldina era ainda um importante centro educacional –apelidavam-na Atenas da Zona da Mata–, vivo e procurado por estudantes de toda procedência, em que pese a concorrência da contígua Cataguases, cujo Colégio, projeto de Oscar Niemeyer, com jardins de Burle Marx, móveis de Joaquim Tenreiro e um vigoroso painel de Portinari sobre o Tiradentes, como que continuava a explosão modernizadora de Humberto Mauro, da Revista Verde e da Meia-Pataca de nossa Lina Tâmega. Já não existiam os cursos superiores, mas o Colégio Leopoldinense continuava lá, imponente, com sua fachada grega e, no vértice do triângulo, a inscrição latina Mens agitat molem.  Tinha um corpo docente de elevado nível. Ainda lá pontificava o quase lendário Professor Machado, figura extraordinária de educador e grande figura humana. Português, engenheiro formado na terrinha, exerceu a profissão na região que Vivaldi Moreira gostava de chamar “a grande Carangola”, passando logo a educador e dono de um educandário. Tinha fama de truculento. E evocá-lo me sugere uma precoce digressão.

Já no Leopoldinense, Machado foi mestre de meu pai, que gostava de falar de sua cultura e suas façanhas. Contava-se, por exemplo, que chegara a “atirar” um aluno para fora de classe, pela janela... Não quero repeti-lo, contudo, sem o cuidado de lembrar que as salas de aula do velho colégio lançavam porta e janelas para um corredor interno; de modo que a queda não podia ser grande; na verdade, era praticamente simbólica. Mas a fama chegou até os nossos dias. Contrariando-a, nosso convívio com ele era timbrado por sua delicadeza de trato e por seu interesse em música (tocava o seu violino) e literatura, notadamente poesia.

Outro europeu dava ali seu contributo à educação (num tempo em que podíamos ainda usar a palavra com propriedade): o francês Rodolphe Gibrat, que lecionava sua língua natal, a espanhola e a latina.

Se os dois europeus brilhavam, havia também a prata da casa. Nosso professor de Português, o poeta Geraldo de Vasconcellos Barcellos, era um deles. E Hamil Adum, nosso irrequieto professor de Inglês. E Lydio Machado Bandeira de Mello, meu patrono na Academia Leopoldinense de Letras e Artes, cuja carreira magisterial culminou na cátedra de Direito Penal da Universidade Federal de Minas Gerais. E –finalizando, para não me estender em demasia–, o polígrafo Oiliam José, ainda hoje atuante na Academia Mineira de Letras, de que é secretário honorário.

No quadro assim superficialmente esboçado inseriu-se à maravilha o José Jeronymo, ou simplesmente Jeronymo, como o chamava a maioria dos colegas. Grande leitor, era visto aos domingos num dos bancos da praça fronteira ao colégio, sobraçando os jornais de fim-de-semana, entre eles o enorme Estadão. Lia-os, como  costumávamos dizer, de cabo a rabo. Como em sociedade nada se perdoa, ganhou o apelido de Zé Jornaleiro. Era senhor de grande acuidade mental e memória incomum. Tendo parado de estudar durante algum tempo, juntamente com seu irmão, Deodato, manteve contudo o interesse em coisas de cultura, de modo que sobressaía notoriamente na multidão dos alunos. Tirava sempre dez em todas as matérias. Sua excepcional proficiência levou as autoridades eclesiásticas a contratá-lo para lecionar no seminário local. Às vezes corrigia proposições desatentas de algum docente nem tão qualificado. Havia um, talvez menos dedicado, que freqüentemente lhe passava a batuta e limitava-se a lhe assistir à aula, quase como um de seus alunos. Certa vez –hoje estou dado a digressões...– um professor, por implicante discordância em questão de somenos, atreveu-se a lhe dar um nove e meio. A injustiça foi causa de um quase-tumulto na escola. Posso dizer que o Zé se tornou, em pendant com o velho Machado, quase uma lenda, se não um herói, no âmbito da escola e da cidade.

Por esse tempo começamos a fazer poesia, José, Deodato, eu e mais alguns amigos. Do grupo, era ele o mais aparelhado para o poema, especialmente o tradicional, que requeria conhecimento e leitura. Nem lhe faltava –tão cedo!– alguma dolorosa experiência de vida: filho de Emílio Vello Rivera e de Helena Pinto Ribeiro Rivera, ficou órfão da mãe aos oito para nove anos (Helena morreu na cidade de Barbacena, o que me incita a imaginar, meio que divagando em nuvens, a ida do jovem a Minas como inconsciente busca de identidade; idéia gratuita, vá lá; mas uma coisa é certa: Minas representou para os dois órfãos um rito de libertação); seguiu-a o pai, no Rio de Janeiro, cerca de um ano depois. Os primeiros versos de Rivera foram já de causar inveja a muito poeta veterano. Um soneto, e que soneto! Veja-se como, após ligeira hesitação inicial, a dicção se consolida no segundo quarteto, a idéia-sentimento ascende na tríade seguinte e, impulsionada pela gradação do verso undécimo, vai culminar no áureo terceto final:


VIDA E SONHO
Não sou poeta. E embora faça versos

Em mim não sinto o espírito criador

Que entre caracteres tão diversos

Distingue o ser feliz do sofredor.

Meus sonhos e quimeras vão, dispersos,

Levados por um vento acolhedor,

Através da amplidão dos Universos

Da Fantasia, do Ideal, do Amor.

Que a vida humana, um desejar constante,

Uma nova ansiedade a cada instante,

Ontem e hoje, hoje e sempre se resume

Num sonho inebriante que sonhamos,

Do qual, como lembrança, conservamos

Apenas o nostálgico perfume...


Um soneto sério, para um adolescente poeta. Vive-se então a fase em que o pensar se prepara para o vôo, mas em que também se começa a pagar à vida o tributo do amor. E o jovem poeta dá, naturalmente, testemunho do seu. Vejamo-lo noutro soneto:


VISÃO NA ALVORADA

A aurora vem raiando. O véu negro da noite

Dilui-se, a pouco e pouco, à luz de um novo dia,

Como se fosse um brando, um suave e leve açoite

A varrer da amplidão a manta escura e fria.

As brumas da manhã que nasce bela e clara

Dissolvem-se no espaço, alvas, esmaecidas,

Cobrindo de rubor a face que beijara

O sol a dardejar em setas coloridas.

No firmamento azul, um pássaro dolente

Gorjeia sem parar, saudando a madrugada,

Na sinfonia agreste e virgem do nascente.

E eu que vou indo triste a caminhar na estrada

Vislumbro na harmonia imensa a minha frente

– Sorrindo para mim, o teu olhar de fada!


Seu Aprendizado Poético (título do opúsculo que publicou pela Thesaurus, em 2004, reunindo essas primícias) completou-se em cerca de três anos, de 1951 a 1953. Também aqui mereceria nota dez, caso submetido a avaliação. Alguns dos poemas aí enfeixados saíram em livro em 1994 (Alma Gentil – Novos Sonetos de Amor, organização de Nilto Maciel); em 2003 participaria com uma composição brasiliense na Antologia de Haicais Brasileiros, organizada por Napoleão Valadares.

Em 1953, seu último ano em Leopoldina, coube-lhe, mercê do currículo privilegiado, comandar a ressurreição do jornal dos estudantes. De maio a outubro tirou, como diretor, auxiliado pelo irmão, secretário, sete edições do Três de Junho. O número inaugural, datado de 5 de maio, trazia no editorial, assinado por José Jeronymo Rivera, com uma palavra sobre o renascer do órgão estudantil –“das próprias cinzas”, como a Fênix–, uma profissão de fé jornalística: 


A nossa linha de conduta –dizia– será invariavelmente uma: a verdade. A verdade em toda e qualquer hipótese, a verdade cristã na vanguarda da luta diuturna contra o erro e a mentira, a verdade pura e imaculada de nossa crença pautando o nosso pensamento e as nossas palavras, contendo nossos impulsos e fazendo-nos agir em conformidade com os princípios sagrados de nossa formação moral e religiosa.

No final da página 2 estampava o soneto “Espectros”.

Ainda naquele mês, no dia 20, saía o número 2, com matéria editorial intitulada “Maio, Mês das Mães” e, fechando a edição, o soneto “Mãe”. O terceiro número saiu na data epônima do jornal, data de fundação do Colégio, Rivera assinando matéria alusiva e estreando uma coluna de cinema, com artigo sobre o filme japonês O Sino de Nagazáki. Em nova edição, vinda a lume no dia 20 do mesmo mês de junho, o editorial é sobre a “Subversão de Valores” em que se engolfava a cultura brasileira, com a ascensão do materialismo, do culto ao dinheiro e à notoriedade, em detrimento dos valores intelectuais e espirituais construídos por homens do porte “de um Ruy, de um Joaquim Nabuco, de um Teixeira de Freitas, de um Machado de Assis, de um Osvaldo Cruz, de um Bilac”; e a novidade é a criação de uma “Galeria dos Poetas Brasileiros”, aberta pelo próprio Rivera com o autor de “Cantilena” (“Quando as estrelas surgem na tarde, surge a esperança...”). Em 5 de agosto, o poeta da “Galeria” é Cruz e Sousa, e a página de abertura é sobre “o problema do ensino” – e é melancólico assinalar que sentimos saudade da educação que se ministrava in illo tempore, que a decadência, que a insuficiência verberada pelo editorialista, embora a razão que decerto o amparava, representaria hoje um avanço, um progresso, seria, mesmo, quase um patamar ideal, ressalvada a tecnologia de que atualmente podemos dispor. No penúltimo número, de 10 de outubro, o poeta homenageado é Moacir de Almeida, e o editorial, “Notas sobre Cultura”, tem palavras que permanecem atuais – a unificação da humanidade ainda está no plano da esperança, é bem verdade, mas as expectativas continuam válidas:

O mundo é um só: apesar da ignorância e do atraso de algumas grandes massas humanas, sobretudo do Oriente, a vida espiritual e intelectual da humanidade tende a unificar-se, em um futuro não muito remoto talvez. As conquistas da ciência necessitam expandir-se mais e mais: já não há lugar para alheamento ou indiferença. O homem sente que é chegado o momento em que todos os povos da terra se unam e, desprezando os fatores maléficos de desagregação e a diversidade de tradições e princípios, trabalhem harmoniosa e eficazmente pela conquista da paz ....

Finalmente, em 25 de outubro, a edição de encerramento do ano – e da Fênix renascida sob o condão riveriano. José cede a primeira página para um conto de Deodato, “História de um Menino Triste”. O editorial vai para a última página; intitula-se “A Hora da Decisão”, toma por mote a obra de Stefan Zweig Brasil – País do Futuro, cita Ronald de Carvalho (“O erro primordial das nossas elites, até agora, foi aplicar ao Brasil, artificialmente, a lição européia”) e aponta as mazelas a combater, num discurso infelizmente ainda atual, mesmo quanto ao analfabetismo, se não esquecemos –e não devemos esquecer– sua permanência no que se convencionou chamar de analfabetismo funcional. Ei-las, na palavra do ginasiano de então:


o combate ao analfabetismo que obumbra a mente de setenta por cento do nosso povo; a melhoria do padrão de vida do homem no campo, evitando-se o êxodo das populações rurais; a difusão e a reorganização completa e objetiva do ensino, propiciando melhor aproveitamento e maior número de técnicos e profissionais especializados, e não apenas bacharéis, muita vez desprovidos de idéias e cheios de ambição; a distribuição equitativa das riquezas, em relação ao esforço e à capacidade de cada um; e, acima de tudo, a revisão dos valores, atribuindo-se a cada fator uma  posição hierárquica, de acordo com a sua importância intrínseca, bem como a compreensão individual das responsabilidades e dos deveres, dos direitos e das obrigações perante o tribunal da nacionalidade e perante o tribunal da consciência.


Jeronymo não volta para Leopoldina em 1954. Sem sua presença dinamizadora, a Fênix morre de vez. Imprimiu-se, todavia, uma edição extra, comemorativa do septuagésimo quinto aniversário do Colégio, em 1981.

Detenho-me nessa breve sobrevida do Três de Junho porque me parece uma realização importante na história do Colégio e definidora do caráter e dos interesses culturais de Rivera. Esses interesses o levariam à formação profissional como Engenheiro Civil, Administrador de Empresas e Economista, ao magistério de nível médio e superior, ao exercício de importantes funções no serviço público, no Rio de Janeiro e em Brasília, à colaboração em programas radiofônicos de música clássica e, abreviando, à literatura, notadamente como tradutor de poesia. Em virtude da sobrelevação desse veio nas áureas minas riverianas, dedicar-lhe-ei com exclusividade a segunda parte desta oração.

Aluno de Francês da Professora Regina Monteiro de Castro, teve já no Ginásio uma boa exercitação na faina tradutória; mas a tradução propriamente literária só veio a tentá-lo em Brasília, em meados dos anos 70. Tendo abandonado precoce e injustificadamente a prática do poema, foi esse o meio que preferiu para reaproximar-se ativamente da poesia (como leitor, nunca se afastou dela).

A publicação em livro de algumas das primeiras traduções ocorre em 1976, com Capital Poems (Victor Alegria – Thesaurus, 1989) e Caliandra – Poesia em Brasília (André Quicé Editor, 1995). O primeiro livro próprio, na espécie, teria de esperar o ano de 1998, quando publica pela Thesaurus Poesia Francesa: Pequena Antologia Bilíngüe, com apresentação nossa, de Arino Peres e de João Carlos Taveira. Foi uma estréia esplêndida, mostrando um poeta de grande força a empregar o seu talento na transposição de autores que iam de Guillaume de Machaut (c. 1300-c. 1377) a Paul Éluard (1895-1952). A segunda edição, dada a lume dez anos depois, esticaria este termo até os nossos dias, com os contemporâneos Yves Bonnefoy e Philippe Jaccottet. Dentre as esmeradas versões em nossa língua é difícil escolher. Qualquer uma traduziria dignamente o bem-recompensado esforço de Rivera. Fiquemos com Baudelaire, poeta de nossa predileção, aí representado preeminentemente –o destaque é meu– por dois sonetos, “Recueillement” e “La Musique”; e, dentre esses, por causa da musicofilia que nos é comum, com o segundo:


A MÚSICA


A música me atrai, muita vez, como o mar!

Rumo à etérea estrela,

Sob um teto de bruma ou na amplidão solar,

Ergo minha vela;


De peito para a frente e com os pulmões inflados,

Qual fossem de tela,

Escalo à vaga imensa os cimos sublevados

Que a noite me vela.


Sinto vibrar em mim o fervor das paixões

De um barco sofrendo;

O bom vento, a tormenta e suas convulsões


No abismo tremendo

Me embalam. Vez a vez, calmaria a espelhar

Todo o meu penar! 


A recepção da Pequena Antologia foi consagradora. Saudaram-na entusiasticamente cerca de três dezenas de escritores de mérito e nomeada. Da numerosa relação pinço, pelo denso de seus comentários, alguns nomes significativos: Alphonsus de Guimaraens Filho, Carlos Nejar, Cleonice Berardinelli, a portuguesa Dalila Pereira da Costa, Fausto Cunha, a italiana Luciana Stegagno Picchio. Se monótono fôra enumerá-los, inviável é transcrevê-los. Limito a exemplificação a um deles, Alexei Bueno, cujo depoimento resume admiravelmente o impacto positivo da estréia riveriana, ao passo que o declara “um dos maiores tradutores de poesia do Brasil”:


Suas traduções –diz ele– são magistrais, algumas inigualáveis. O “Recolhimento”, do Baudelaire, que julgo dos maiores sonetos da língua francesa, está extraordinário, mas o grande espanto é o quase impossível Cemitério Marinho. Que grandes soluções as suas, e que arte em abandonar as consoantes pelas toantes nos momentos inevitáveis, criando verdadeiras surpresas no que seria uma irregularidade e mantendo de ponta a ponta o tom e o registro altíssimo desse poema sem paralelo.


Não posso deixar, contudo, sem menção o veredicto de Fausto Cunha, objeto de nossa comum admiração. Para o contista de As Noites Marcianas e ensaísta de O Romantismo no Brasil, a Pequena Antologia é em verdade grande, e o “Cemitério Marinho”, “um muitíssimo bem sucedido morceau de bravoure”.

De 1999 é Cidades Tentaculares (Les Villes Tentaculaires), primeiro livro de Émile Verhaeren traduzido integralmente entre nós. Rivera tem pronta para o prelo a tradução de outro livro desse belga de expressão francesa, Les Heures. Em 2001 lançou as Rimas de Gustavo Adolfo Bécquer. Dessas, que lhe valeram o prêmio Cecília Meireles, da União Brasileira de Escritores – Rio de Janeiro, quero lembrar um poema que apreciamos desde as primeiras lições de Espanhol, em Leopoldina:

Do salão em um ângulo escuro,

de sua dona talvez olvidada,

silenciosa e coberta de pó

via-se a harpa.

Quanta nota dormia nas cordas,

como o pássaro dorme nas ramas,

esperando sentir a mão nívea

que sabe arrancá-la.

–Ai –pensei–. Quantas vezes o gênio

assim dorme no fundo de uma alma,

e uma voz, como Lázaro, espera

que lhe diga: “Levanta-te e anda”!

Outra novidade em português são os poemas em prosa do Gaspard de la Nuit, de Aloysius Bertrand. Nosso querido Xavier Placer historia, no prefácio:

ORA CONHECENDO as traduções de poesia francesa e espanhola de José Jeronymo Rivera, sugeri um dia que traduzisse o Gaspard. E ele, de Brasília, em suas costumeiras cartas fonadas: – Aceito o repto! Correu a informar-se em detalhe com o bibliófilo e musicólogo Sérgio Luiz Gaio, que possuía o raro autor em bela edição e que ainda o fez ouvir bertrandianos poemas musicados por Ravel.

Após declará-lo “tradutor fiel e exigente”, diz mais:

Ao trabalhador intelectual José Jeronymo Rivera, de formação matemática, musical e literária, louvação não é preciso. O feito e bem feito o promove.

Cabe salientar entretanto que, com sólida experiência neste ofício difícil (Ortega y Gasset qualificou-o de “faena improbable/ pero de gran sentido” em Ideas y Creencias – Miseria y Esplendor de la Traducción), mais uma vez saiu-se bem, confirmando premiações por outros trabalhos.

Porque sabe que traduzir é servir, mas não se escravizando à letra, atualizando com inteligente e aberto critério, ah! e jamais se substituindo ao Autor. Fundo e forma aqui estão preservados: sabor do original. E sem retirar a feição estética do volume, quis acrescê-lo do instrumental informativo. Além da cronologia de Bertrand apresenta a fortuna crítica mais nova do Gaspard de la Nuit.

Mereceu esse trabalho (como os anteriores, edição da Thesaurus; data: 2003) excelentes críticas de Adelto Gonçalves, Antônio Olinto, Manuel Hygino dos Santos e Rubens Shirassu Júnior.

Dez anos depois vem a lume, pela mesma Editora, A Voz a Ti Devida, do poeta espanhol (da famosa Geração de 27) Pedro Salinas (de quem, aliás, tem também José Jeronymo, prontas, a tradução de Razón de Amor e Largo Lamento, completando a “trilogia amorosa”, além das versões de El Contemplado e Todo más Claro). Rivera, esse “poeta disfrazado de traductor”, na feliz expressão de José Antonio Pérez-Montoro, que assina o estudo introdutório, foi, a propósito, alvo de lúcido comentário de Adelto Gonçalves, que o aponta como “um dos grandes tradutores das poesias espanhola e francesa para a Língua Portuguesa”. Nas orelhas, o poeta João Carlos Taveira registra “a marca de qualidade da tradução de José Jeronymo Rivera, com a confirmação do velho axioma: ‘Todo tradutor de poesia deve ser, em essência, um poeta.’”

Nosso poeta-tradutor lançou ainda um bom número de edições do mesmo gênero (todas bilíngues) em parceria com autores do porte de um Fernando Mendes Vianna e um José Augusto Seabra: Poetas do Século de Ouro Espanhol (Embaixada da Espanha / Thesaurus, 2000), laureado com o Prêmio Joaquim Norberto, da UBE – Rio de Janeiro; Victor Hugo: Dois Séculos de Poesia (Thesaurus) e O Sátiro e Outros Poemas (Galo Branco), em 2002; Antologia Pessoal de Rodolfo Alonso (Thesaurus) e 25 Sonetos Descaradamente Eróticos, de José Antonio Pérez-Montoro (Círculo de Estudos Clássicos de Brasília), ambos de 2003; e Antologia Poética Ibero-Americana, organizada por Pavel Égüez para a Asociación de Agregados Culturales Iberoamericanos (Cuiabá, 2006). Participou, finalmente, com traduções inversas, do português para o espanhol, no belíssimo volume, organizado por Seabra, Poetas Portugueses e Brasileiros dos Simbolistas aos Modernistas (Instituto Camões / Thesaurus, 2002).

Na coleção Livro na Rua, da Thesaurus, publicou, além de seu Aprendizado de Poesia, na condição de organizador: Humberto de Campos: Poesia; Xavier Placer: Poemas; Miguel Torga: Contos e Almeida Garrett: Poesias.

Completando o quadro de suas atividades literárias: tem realizado palestras na Associação Nacional de Escritores e na Biblioteca Nacional de Brasília, e colaborado em periódicos como Literatura, Revista de Poesia e Crítica, Revista da Academia Brasiliense de Letras e Jornal da ANE.

Encerremos nossa homenagem a esse tradutor extraordinário com outra exaltação à arte de Euterpe, na voz privilegiada de Albert Samain, privilegiadamente modulada por José Jeronymo Rivera:

MÚSICA

Se palavras não há que possam de minha alma,

Nesta noite, conter a ânsia de sossegar,

Que um arco puro se erga e cante, e seu cantar,

Sozinho, me transforme o sonho ansioso em calma.

Ó taça de cristal com a lembrança que ensalma!

Ó Música, tu vens minha sede matar;

Só no segredo teu, como um lábio a beijar

Outro lábio, instintiva, a alma se funde e acalma.

Soluço de ouro!... Estranho e divino mistério!

Um vento de asa corre, e é como um refrigério;

Mãos de anjos vêm passear em nós sua doçura,

Harmonia, e tu és a Virgem amorável,

A criança gentil que em seu peito emoldura

O nosso coração imenso e miserável.

José Jeronymo Rivera vem enriquecer nossa orquestra acadêmica de um instrumento raro. É-lhe destinada a Cadeira n.º XXVIII – Olavo Bilac, antes ocupada por Clovis Sena, ilustre jornalista, poeta e ensaísta, como nós amante da música, dileto amigo nosso desde os inícios de Brasília. 

Bem-vindo seja.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

José Jeronymo Rivera: poeta e tradutor

Anderson Braga Horta
In: Do que É Feito o Poeta
Thesaurus, Brasília, 2014 (no prelo). 


Academia de Letras do Brasil, Brasília,
em 11 de agosto de 2004.

No remoto ano de 1950, numa pequena cidade mineira da Zona da Mata, um grupo de adolescentes, vindos de diversos pontos do Estado e do País, reuniu-se como que por obra do acaso, e essa reunião foi cimentada por afinidades logo percebidas, que imediatamente se transformaram em amizade. Era a veneranda cidade de Leopoldina, onde, um quarto de século antes, freqüentara o então Ginásio Leopoldinense o jovem português Adolfo Correia da Rocha, que mais tarde, de volta à pátria, brilharia como estrela literária de primeira grandeza, com o nome de Miguel Torga; era a tradicional e culta Leopoldina, onde, no ano que marcou o início da 1.ª Guerra Mundial, sofreu seus últimos dias o grande poeta do Eu, o paraibano Augusto dos Anjos.
Os rapazes que então se encontravam, atraídos pela boa fama do Colégio Leopoldinense, dir-se-ia que só então chegavam, de fato, ao termo do processo de nascimento. Com efeito, experimentariam, a partir dali, as primeiras amizades verdadeiras, desvinculadas dos folguedos infantis. Longe de casa, tiveram então um começo de vida independente. Primeiras responsabilidades. Para alguns, como José Jeronymo Rivera e eu, primeiro trabalho ¾ professores que fomos de jovens internos do Seminário. Primeiros amores. Descobrimento da poesia.

No princípio era o caos. A noite tenebrosa

Cobria a imensidão sombria e silenciosa
Como um negro sudário, amortalhando o espaço,
Num amplexo fremente, em sepulcral abraço!...
- E Deus criou a luz! E logo o mundo inteiro
Banhou-se em resplendor, e um celeste chuveiro
Dos astros derramou-se, em profusão brilhante,
Por sobre a Terra nua, agreste e deslumbrante.
- E Deus criou a vida! E as árvores surgiram
Em bosques de verdura, e o deserto cobriram!

De peixes povoou-se o oceano azul e calmo.

- E toda a criação, entoando ardente salmo,
Glorificava o Ser onipotente e bom

Que a tudo concedera o doce e suave dom

De gozar a beleza e a liberdade e a paz
Deste Éden de delícia e de ventura tais!
Os pássaros no céu cantavam docemente
Festivos madrigais, num voejar fremente...
As flores em botão, nos bosques, entreabriam
As pétalas sorrindo, e os colibris desciam
Do espaço p’ra beijar os cálices floridos...
Das fontes a brotar, filetes coloridos,
Refletindo o luzir do Astro-Rei no Infinito,
Banhavam-se de prata, em misterioso rito...

E tudo era alegria... e, entanto, o Criador

Sentiu que embora belo e cheio de calor
O mundo era imperfeito: inda faltava alguém
Que viesse completá-lo, e desfrutar também
A doce suavidade, a paz do Paraíso...
- E o homem foi criado ¾ e logo, num sorriso,
De fé e de esperança envolveu toda a Terra
E o mar, e o vale, e a mata, e a resplendente serra...
Cito versos de Rivera, dos que escreveu naqueles primórdios de riquíssima semeadura. A esses não deu prosseguimento. Por quê? Não sei, mas estou a imaginar se não desejaria o jovem poeta, inconscientemente, manter-se in æternum nos alvissareiros, nos doces inícios, com as suas lutas, é fato, mas ainda não com as desamparadas batalhas em que a vida costuma exercitar os seus filhos.
A citação não é sem propósito. Leopoldina foi para nós, de certa maneira, o começo do mundo. E que bom que esse começo tenha sido poético, repleno de fé no ser humano e na vida.
Daquele pugilo de adolescentes que ali se reuniam para levar o mundo nos ombros é preciso lembrar alguns nomes, pelo menos os dos mais afinados ao diapasão da poesia. Iniciavam todos a marcha do país da esperança para o das realizações (e das frustrações, ai de nós!), e o rito de passagem era oficiado pelas musas. Para a maioria o rito se perdeu nas primeiras curvas do caminho; mas para uns poucos o sacrifício poético (sacrifício, aqui, no sentido de oferenda, não de martírio) seria por toda a existência.
Junto de José Jeronymo orbitavam a vida: Deodato, seu irmão, dois anos mais moço - que, de Leopoldina e do Rio, aportaria a Brasília e daqui, logo que se implantou a ditadura, ganharia o mundo, para curtir longo exílio; Hélcio Campomizzi, que se formaria em Odontologia e em Medicina e teria a trajetória prematuramente truncada pelo coração explosivo; José Herberto Dias, que também passaria por este altiplano, sem nestes cerrados lançar raízes; Luiz Henrique Pessina, que, devotado antes à poesia das formas que à das palavras, se tornaria arquiteto, abrilhantaria o magistério da profissão em Brasília e está hoje entre nós; Amaury Pacheco, representando outra vertente nessa cadeia em que a comunidade maior era, afinal, a da amizade  - engenheiro, constituiria seu destino em terras fluminenses; e outros tantos amigos, e amigas, cuja relação devo em tempo sustar, para não inundar esta hora de nomes plenos de sentido para Rivera - e para mim - , mas não para a maioria dos amigos que nos prestigiam com sua presença.
Algumas outras figuras, entretanto, quero ainda lembrar, para dar uma idéia da atmosfera humana que insuflava aquele punhado de quase-meninos:
- Assim meu colega de turma Sebastião Murilo... de quê, mesmo? os nomes vão-se apagando da memória... Sebastião Murilo Pereira de Oliveira, negro e tímido, contrastando com o muito branco e extrovertido Gustavo Monteiro de Castro Júnior, poetas ambos, ambos demasiado cedo colhidos.
- O dentista Murilo Monteiro de Castro (quantos Murilos poetas em Minas!), que se foi também prematuramente, afogado, em meio a férias que gozava em São Pedro dos Ferros. Esse dentista-poeta, morto sem ver seus versos publicados, dando, certa feita, atendimento profissional a Rivera, deu-lhe de quebra ¾e a mim, que o acompanhava¾ eloqüente atendimento versífico, discorrendo com proficiência sobre a mecânica do alexandrino, que porfiávamos por dominar.
- O desenfreado, pálido, estranho, solitário Haroldo Barreto, sonetista de valor, que saía da toca para, violino em punho, acompanhar-nos em nossas escapadas vespertinas ou noturnas.
- René Monteiro de Castro, advogado, que se unia a nós, tão mais moços, e conosco fraternizava e conosco se confundia, talvez por encontrar em tal companhia o universo de sonho, de primavera, de liberdade e de culto às letras, que alhures não via...
Do corpo docente destacavam-se:
- Joaquim Guedes Machado, português, professor de Matemática (que já o fôra de meu pai), homem de sensibilidade, violinista, famoso pela vivacidade intelectual e por certa truculência (que já encontramos atenuada) para com os alunos relapsos. Conta-se que chegou a botar para fora, ou melhor, jogar fora de classe, pela janela, um ou outro mais nonchalant ou mais atrevido. (Amenize-se: as janelas eram baixas... Davam para um corredor interno aberto em direção ao pátio.)
- Seu amigo, e antípoda pelo temperamento manso e reservado, com quem decerto recordava passagens de sua vida no além-mar, Monsieur Rodolphe Gibrat. Lecionava Francês e Espanhol.
- Lydio Machado Bandeira de Mello, advogado, poeta, matemático e filósofo. Impressionava com o título de um de seus livros ¾Prova Matemática da Existência de Deus¾ e com suas divagações sobre uma espécie de memória do Universo contida nas raias de hidrogênio espalhadas pelos espaços. Publicou vários livros, alguns caprichosamente manuscritos. Fez brilhante carreira em Belo Horizonte, como professor universitário.
- Oiliam José, historiador, lecionava também Filosofia. De modos ascéticos, disciplinadíssimo, severo, dedicado. Vive hoje na capital do Estado. Autor de livros de história e de poesia, é membro e secretário perpétuo da Academia Mineira de Letras.
- Hamil Adum, professor de Inglês. Competente, singularizava-se por fazer boa camaradagem com os discípulos.
- Geraldo de Vasconcellos Barcellos, poeta. Dava aulas de Português, Biologia e Química. Entre esses extremos, distinguia-se por bem orientar e estimular, poeta que era, os bardos al primo canto. Deodato Rivera, já no Rio de Janeiro, em 1996, organizou um mutirão de ex-alunos para editar um de seus livros, Para Elza, de que me coube o prefácio.
A temida Professora Regina Monteiro de Castro (de Desenho e Francês), Dona Olimpinha, Dona Belinha e Dona Judith, esposa do Professor Machado, davam a nota feminina no magistério.
Monsenhor Guilherme de Oliveira, o Monsgo, como o chamávamos, devido à maneira abreviada com que se assinava, não lecionava, mas era o diretor do Colégio. Muito pequeno, franzino e tranqüilo, sabia fazer-se estimado e respeitado.
Dentre as pessoas gradas da cidade com que José Jeronymo mantinha relacionamento mais chegado recordo o Prof. Alziro Carvalho, antigo diretor do Colégio, e o Dr. Castellar Modesto Guimarães, promotor de justiça.
Em 1950 estávamos no internato José, Deodato e eu. Era um internato camarada. Como tínhamos bom aproveitamento escolar, davam-nos permissão para sair praticamente a semana toda, de modo que podíamos jogar nossa sinuca, tomar nossa cerveja e... namorar. O descobrimento do amor não podia deixar de se refletir na poesia, igualmente recém-descoberta, de Rivera. Quero ler uma dessas primícias, que bem reflete o halo românico em que nos movíamos, e cujas qualidades mostram o injustificável de ter o autor interrompido por décadas o exercício do verso:

VISÃO DE AMOR

Do firmamento no véu,
Em cada estrela do céu
- Dos astros no resplendor -
No azul transparente e claro,
Zimbório precioso e raro,
- Em tudo te vejo, amor!
                   No despertar da manhã,
                   Quando a natura louçã,
                   Sentindo o morno calor
                   Do sol que nasce distante
                   Acorda, alegre e vibrante,
                   - Em tudo te vejo, amor!
Nas verdes ondas do mar,
Murmurando, sem parar,
Com leve e brando rumor,
Cantigas doces e belas
Aos barcos de brancas velas,
- Em tudo te vejo, amor!
                   Quando, em tarde merencórea,
                   Ouço de amores a história
                   Na voz de um meigo cantor
                   De volta ao ninho, arrulhando,
                   A companheira chamando,
                   - Em tudo te vejo, amor!
Na pétala perfumada
Da flor à beira da estrada
- Encanto do viajor
Que vai pela vida afora,
De dores a alma em pletora,
- Em tudo te vejo, amor!
                   Nas águas claras do rio,
                   Que em turbilhão ou num fio,
                   Em silêncio ou com fragor,
                   Vão correndo à luz do sol,
                   Saudando um novo arrebol,
                   - Em tudo te vejo, amor!
Da noite na paz tranqüila,
Enquanto o orvalho destila
Gotas na pét’la da flor,
E a lua deixa no rastro
Cintilações de alabastro,
- Em tudo te vejo, amor!
                   No esplendor da primavera,
                   Quando em luzes a tapera
                   É toda vida e calor,
                   E o coro da natureza
                   Entoa um hino à beleza,
                   - Em tudo te vejo, amor!
No marulhar da cascata,
Alegre chuva de prata
De imaculado lavor,

Fulgindo em festas ardentes

De brilho e espumas albentes,
- Em tudo te vejo, amor!
                   Enfim, em tudo que encerra
                   - No céu, no mar ou na terra ¾
                   A obra do Criador,
                   - Em tudo tu estás presente!
                   Em tudo est’alma te sente!
                   - Em tudo te vejo, amor!...
                  
Em 1951 sairíamos para uma pensão, em casa de D. Sirene, próximo do Colégio, José, Deodato, Luiz Henrique, Amaury e eu, indo juntar-se ao clã alguns mais moços.
Falei em bom aproveitamento escolar. No caso de Rivera, a expressão fica longe da realidade. Aproveitamento máximo tem melhor cabimento. Desde o primeiro instante ele se revelou aluno excepcional. Sua média final era 10, invariavelmente, em todas as matérias. No Colégio Leopoldinense só tinha havido um caso assim, protagonizado por uma moça. Eu, não conheço nenhum outro.
Já era, naquela época, leitor incansável. Nos primeiros tempos, no internato, ensaiaram apelidá-lo Jornaleiro, porque era visto sobraçando grossos jornais do Rio e de São Paulo, jornais que lia religiosamente, com particular interesse nos suplementos literários. Soube desde logo canalizar para a vida em comum o seu grande potencial intelectual, ao invés de usar apenas para passar de ano, e para gozo interno, essa extraordinária capacidade de ler, aprender e fruir. Entre maio e outubro de 1953, junto  com Deodato, figurando ele como diretor e o irmão como secretário, tirou sete números do Três de Junho, “órgão dos alunos do Colégio Leopoldinense”, nos quais acolheu múltipla contribuição, colaborando largamente ele mesmo com editoriais, poemas, crítica cinematográfica, notas literárias e políticas. Releio os primeiros versos que nele publicou (e em que já se nota a marca simbolista):

ESPECTROS

Nas asas virginais da Fantasia,
Entre nuvens de sonhos e desejos,
Ao som da magistral polifonia
De um festival de cores e de arpejos;
Vão passando, em fantástica harmonia,
Em meio a tempestades e lampejos,
As procissões do Amor e da Poesia
- Estranhos e patéticos cortejos

De ilusões, esperanças e quimeras,

Anseios de ternura incompreendida,
Farrapos de emoções da mocidade,
Lembranças de passadas primaveras,
Toda a existência humana resumida
Num cortejo de dor e de saudade...
A ida para Leopoldina fora inspirada aos dois irmãos pela experiência de um primo, Hermenegildo Villaça  - o Hermê - , com quem se reencontrariam em Brasília e que se tornaria, para mim, parte dessa irmandade adotiva. Villaça lá estivera alguns anos antes, mais para servir ao Exército no Tiro-de-Guerra 98 que por outros quaisquer motivos.
José Jeronymo Ribeiro Rivera - este o nome completo do nosso mais novo acadêmico¾ nasceu no Rio de Janeiro, no bairro de Vila Isabel. (Não nega a origem, amante que é da arte de Euterpe, desde a criada por Noel e companheiros de altitude em nossa melhor música popular, até os clássicos de todo gênero: Bach, Mozart, Beethoven, Schubert, Schumann, Tchaikovsky e Verdi puxando o coro.) É filho de Emílio Vello Rivera e Helena Pinto Ribeiro Rivera.
O avô paterno, Geronimo Vello Rivera, era natural de Covelo, província de Pontevedra, na Galiza, Espanha. Nascido em 1874, teria vindo muito jovem para o Brasil, como ajudante de padeiro. Aqui se casou com Raquel dos Santos Rivera, provavelmente originária da província de Trás-os-Montes, Portugal. (Consta que essa avó, antes da relativa prosperidade que viria a conquistar o casal, teria engomado as camisas de Bilac.) Geronimo Vello trabalhou sempre no ramo da panificação, chegando a sócio de vários estabelecimentos, um deles na Rua da Matriz, em Botafogo, onde nasceu Emílio. Fixou-se no Largo do Pechincha, em Jacarepaguá, onde fundou a Padaria Rivera, existente até hoje. Faleceu em 1939, seguido por Raquel sete anos mais tarde. Foi a herança desse avô padeiro e dessa avó engomadeira que possibilitou os estudos de José e Deodato.
O avô materno, José Pinto Ribeiro, médico, paulista, casou-se em Barra Mansa com Maria Ramos Pinto Ribeiro. Foi prefeito daquela cidade fluminense, onde há rua com seu nome, e deputado estadual. Ao se mudar, viúvo, para o Rio, levava três filhas: Helena, Adélia (que se tornou irmã de caridade e foi madrinha de batismo de Rivera, vindo a falecer com pouca idade) e Angelina, falecida em 2004, aos 95 anos.
Segunda interferência de Polímnia, ou augúrio de poesia, entre os ancestrais de Rivera: a menina Helena foi brindada com um poema por Luís Pistarini, amigo de seu pai. Desse poeta, em nosso tempo de estudantes, algo ainda se podia ler em uma que outra antologia. Seu nome vai submergindo na maré montante do oblívio. O poema, datado de Barra Mansa, 1916, é, pois, dirigido a uma garota de 11 anos. Vale a pena recolher esses versos singelos:

 

 

 À HELENA

            Encantadora Filhinha do Dr. Pinto Ribeiro

Helena... Angélica Helena

Tem um quê celestial...
É uma graciosa açucena,
É um casto lírio do val!
Que suave inocência bóia
Nos seus olhos virginais!
Sua homônima de Tróia
Nunca teve olhos iguais!
A boca fresca e mimosa,
Qual bipartida romã,
Recorda um botão de rosa
Pompeando ao sol da manhã...
Helena Pinto Ribeiro
Tem onze anos... Onze só,
E um rostinho feiticeiro...
Mas... nunca teve um coió!
Também pudera!Tão linda,

Mas, tão criança também!

Como flirtar quem ainda
Mal na vida entrando vem?
Não! disso não cuida a Helena,
Pois ela é a primeira a ver
Que, sendo assim tão pequena,
Tem mais coisas a fazer...
Por exemplo: ir ao colégio...
Pegar um livro... estudar...
Ah! seria um sacrilégio
Seu coração perturbar...
Deus a livre vigilante
Da moda que hoje aí vai...
Que por ora ¾  boa e amante ¾
Só pense no seu papai!
Que seja, das irmãzinhas
Junto, a melhor das irmãs,
Formando assim três gracinhas,
Três belas rosas louçãs!
Que de seu pai seja o orgulho,
Toda a casa a governar,
Dispondo, mas sem barulho,
As coisas no seu lugar!
E meiga, já substituindo
A santa que a deu à luz
E ora descansa, dormindo,
Calma, à sombra de uma cruz...
Aliás, para isso é preciso
Que Helena saiba fazer
De seu lar um paraíso,
E assim suavize o sofrer
Do homem bom que, só no mundo,
Só com elas três ficou,
E o golpe que, de tão fundo,
Não sei como não o matou!
Eis o que à Helena desejo
De todo o meu coração,
Deponho-lhe um casto beijo
Na linda e pequena mão!
Emílio e Helena casaram-se em Aparecida, na antiga basílica, em 21 de janeiro de 1932. Tiveram três filhos: José Jeronymo, nascido em 12 de junho de 1933; Deodato, em 8 de junho de 1935; e Raquel, que, nascida em 1936, mal passou dos três meses.
Emílio era comerciante, tendo mantido diversos negócios. Dentre suas atividades profissionais destaca-se a de sócio-gerente do laboratório cinematográfico Logograph, localizado em plena Cinelândia. Traduzia do alemão, em que era autodidata. Helena faleceu em Barbacena, em 1942, aos 37 anos. Emílio no Rio de Janeiro, em 1943, aos 34.
José expressaria a dor da orfandade precoce num soneto, em que julgo notar alguma reminiscência de Antero, um dos poetas que admirávamos e amávamos:
      MÃE

Quando, em meio à tristeza desta vida,

Eu me vejo sozinho e abandonado,
Sentindo o coração pulsar, cansado,
¾ Mortas as ilusões, e a fé perdida;
Quando, ansioso, procuro no passado,
No Ideal que sonhei ¾  visão sentida,
Um consolo à minha alma dolorida
¾ Um pouco de carinho ao desgraçado,
Vejo um vulto celeste e silencioso
Chegar-se a mim, beijar-me a fronte exangue,
Banhando-me de luz e suavidade...
És tu, ó mãe querida, o anjo bondoso
Que me secas as lágrimas de sangue
A brotarem da fonte da saudade...
Os irmãos José e Deodato ficaram sob a guarda da avó Raquel e, falecida esta, dos pais de Hermenegildo, seus tios Alfredo Gomes Villaça e Sylvia Rivera Villaça. Estudaram como internos no Colégio de São Vicente de Paulo, onde se acha atualmente o Santuário da Medalha Milagrosa, no bairro da Tijuca. Seus estudos foram entrecortados por períodos de interrupção até a ida para Leopoldina, onde, além de reatá-los, prestaram o serviço militar.
Datam dessa época, aliás, as primeiras experiências enológicas do futuro Dr. Rivera, faturadas com o mais puro vinho das adegas vaticanas. Cabe aqui este parêntese bem-humorado para relatar que nosso novo acadêmico, antigo coroinha e congregado mariano, que hoje abriga suas dúvidas sob a capa do agnosticismo, escapou por pouco de ajudar um papa a rezar missa. Com efeito, o menino de 1942 acolitou diante do altar a D. Benedetto Aloisi Masella, Núncio Apostólico no Brasil, mais tarde camerlengo na Santa Sé e candidato (malogrado) ao trono de sumo pontífice. E andou provando, à sorrelfa, do seu delicioso vinho de missa.
Passemos a um interregno árido talvez, mas necessário, para dizer das atividades profissionais do escritor que nos honramos de receber.
De volta ao Rio, em 1954, José deu aulas particulares, passou onze dias como bancário, na Sulacap – Sul América Capitalização, trabalhou na Gráfica Riex e, aprovado em concurso do Dasp, foi nomeado oficial administrativo e lotado na Casa da Moeda, Ministério da Fazenda, em junho de 1955. No ano seguinte, transpôs o vestibular para a Escola Nacional de Engenharia. Terminou o curso em 1960. Não contente, formar-se-ia ainda em Administração de Empresas (1969) e em Economia (1979), pelo Ceub, e faria os seguintes cursos de especialização: Engenharia Econômica, Cepes, Brasília, 1972; Administração Profissional, DNER, Brasília, 1973; Project Appraisal, University of Strathclyde, Glasgow, 1977. Veio para Brasília em março de 1961, como Engenheiro Fiscal da Novacap. Exerceu, entre outras funções, as de chefe do Departamento Econômico (depois Terracap) e, em 1969/70, diretor-financeiro da Shis – Sociedade de Habitação de Interesse Social. Exerceu o magistério no Elefante Branco, tendo sido paraninfo da primeira turma do 2.º ciclo noturno. Em 1962 foi convidado a lecionar Física no Curso de Arquitetura da UnB, onde ficou até 1964. Nesse ano, passou a fazê-lo no Ciem, vinculado à UnB, licenciando-se em 1968. Lecionaria também no Ceub e na AEUDF (Administração da Produção e Planejamento). Nomeado, por concurso, Técnico de Tributação, mais tarde Auditor Fiscal do Tesouro Nacional. Serviu no Gabinete do Ministro da Fazenda de 1974 a 1979, e deste ano a 1985 no do Ministro do Planejamento. Voltou ao Ministério da Fazenda, donde, aposentado como Secretário da Receita Federal Adjunto, saiu para chefiar gabinete na Câmara dos Deputados, situação em que se encontra até hoje. É co-autor, ao lado de Frederico Máximo Vianna Barbeitas, Guenther Jung e Jupy Barros de Noronha, do livro Fontes de Recursos Federais para Estados e Municípios
Findo esse interregno, que em verdade só tem de árido o resumo dos fatos, riquíssimos, por minhas pobres palavras, passemos a outro, inequivocamente fecundo em flores e frutos. Jeronymo casa-se em 1962. A esposa, Naly Sá Roriz Rivera, advogada e professora, dá-lhe por prole cinco meninas: Helena Maria, Andréa Lúcia, Ana Luisa, Tania Cristina e Flávia. Como se não bastassem tantas mulheres, vieram quatro netinhas: Mayra, Fernanda, Anita e Isadora. Único varão nessa descendência, e penúltimo broto até agora, o menino Tiago.
Jeronymo e Naly, que se casaram no mesmo mês em que eu e Célia ¾nós no começo, eles no fim de junho¾, foram nossos padrinhos de casamento. Amigos fraternos, acabamos num compadrio duplo: eu e minha mulher somos padrinhos de sua filha caçula.
Como oferenda poética à afilhada ¾e, extensivamente, a toda a família¾ lavrei então estes versos:

SONETO PRECIOSO

PARA MINHA AFILHADA FLÁVIA

ou simplesmente

SONETO DE FLÁVIA

Flavinha — flâmea gema que cintila

livre de engaste, como a pura Idéia,
favo menor de quíntupla colméia,
fulva essência a agitar morena argila;
Flávia — de viva alfaia, fanopéia,
flama inquieta sem sombra de favila:
levem-te sempre à flor de água tranqüila
brandas brisas em fúlgida coréia.
E quando em pleno oceano, além da aurora,
nem vagas vejas, nem siroco aflante:
flavo favônio a afável mar se alie.
E assim, feliz, Flavinha, vida em fora,
sempre no amor dos teus —neste flamante
lar das cinco meninas— Deus te guie.
Em Leopoldina José Jeronymo Rivera faz a sua iniciação poética ativa. Em Leopoldina, exercitando-se no aprendizado de línguas, ensaiou as primeiras traduções, ainda literariamente desambiciosas. A vida toda, desde que se alfabetizou, tem sido um competente devorador de livros. (O adjetivo é cabível, pois há os que lêem não-seletivamente, há os que lêem apenas para matar o tempo, e há os que lêem sem assimilar.) Em Brasília, carreira profissional organizada, família constituída, tendo viajado por quase todos os cantos da Terra, com todo aquele cabedal de letras, com toda essa experiência de vida, descobriu o veio de ouro de sua realização poética: a tradução de poesia. Agrada-me pensar que tenho alguma responsabilidade nisso. Em 1976, traduziu-me um “Madrigal” para o inglês. Figura a tradução em Capital Poems, antologia publicada pela Thesaurus em 1989, e na Folha da ANE, tirada por José Maria Leitão em computador.² Em 1987, com a filha Tania Cristina, passou para o francês “Invenção da Noite”,³ que assim ficou:
INVENTION DE LA NUIT
De ce silence et de cette ténèbre
j’édifie ma nuit
particulière et intransférible.
Il ne me faut pas d’inventer les étoiles,
elles s’éveillent et luisent d’elles mêmes.
Et à minuit une lune sombre
lève sa face d’argent à l’horizont
et verse dans mes yeux un pleur, un froid.
Verteu para o alemão o poeminha “Olhos”:4
AUGEN
Plötzlich finde ich
die gewaschte Schönheit  deinen Augen heraus.
       (Zwischen mir und den Schlaf
       du trägst eine Sonne in den Lippen
       und im Busen Venus.)
Deine Augen sind wie ein Himmel, daβ geregnet hat.
(Recentemente, já senhor de notável bagagem de tradução poética, transpôs esse mesmo poema para o grego moderno, que ora estuda. Devo renunciar a ler essa versão, pois para mim grego moderno é grego...)
Com poemas originais participou em duas obras coletivas: em Alma Gentil – Novos Sonetos de Amor, organização de Nilto Maciel,5 com “Refúgio”, “Depois...” e “Encantamento”; e na recente Antologia de Haicais Brasileiros, de Napoleão Valadares,6 com esta bela composição:
Serras, as cigarras
serram o ar primaveril.
Serragem? a chuva.
Com algumas traduções do francês entrou em Caliandra – Poesia em Brasília,7 em 1995.
Daí por diante, o tradutor não parou mais. E nos deu, nesta ordem: Poesia Francesa: Pequena Antologia Bilíngüe,8 sua estréia em obra individual, “já em odor de mestria”, conforme disse eu alhures (textos de apresentação assinados por Arino Peres, por João Carlos Taveira e por mim); Cidades Tentaculares, de Émile Verhaeren;9 Rimas, de Gustavo Adolfo Bécquer, com estudo introdutório de José Antonio Pérez Gutiérrez;10 Gaspard de la Nuit, poemas em prosa de Aloysius Bertrand, com prefácio de Xavier Placer (redigi as orelhas).11 Em colaboração com Fernando Mendes Vianna e comigo, assina as traduções de Poetas do Século de Ouro Espanhol, estudo introdutório de Manuel Morillo Caballero;12 Victor Hugo: Dois Séculos de Poesia13 e O Sátiro e Outros Poemas,14 estudo introdutório de Mendes Vianna; comigo, com José Antonio Pérez, José Santiago Naud, Kori Bolivia, Manuel Graña Etcheverry, Rodolfo Alonso, Rumen Stoyanov e Ángel Crespo (in memoriam), Poetas Portugueses y Brasileños de los Simbolistas a los Modernistas (versão para o espanhol; organização do saudoso José Augusto Seabra);15 com José Augusto Seabra e comigo, Antologia Pessoal de Rodolfo Alonso;16 comigo, 25 Sonetos Descaradamente Eróticos, de José Antonio Pérez.17 Tem prontos para o prelo: em colaboração, uma coletânea de poetas ibero-americanos, a ser editada pela Associação de Adidos Culturais em Brasília; singularmente, La Voz a Ti Debida, de Pedro Salinas. Mencione-se, enfim, sua colaboração em periódicos como o Boletim da ANE, a Revista de Poesia e Crítica, a Revista da Academia Brasiliense de Letras, Literatura e Poesia para Todos, e sua atividade de conferencista na Associação Nacional de Escritores.
Sua fortuna crítica arrola textos impressos de Adelto Gonçalves, Afonso Ligório Pires de Carvalho, Alexandre Machado, Álvaro Alves de Faria, Antonio Carlos Osorio, Antonio Olinto, Branca Bakaj, Fernando Py, Hildeberto Barbosa Filho, Manoel Hygino dos Santos, Mário Teles de Oliveira, Vili Santo Andersen, Wilson Martins, jornal Linguagem Viva, a par de comentários epistolares de Adelaide Petters Lessa, Alexei Bueno, Alphonsus de Guimaraens Filho, Aluízio Valle, António Campos, Antônio Houaiss, Carlos Alberto Abel, Carlos Nejar, Cleonice Berardinelli, Dalila Pereira da Costa, Enéas Athanázio, Fausto Cunha, Gerson Valle, Ivan Junqueira, Ivo Barroso, José Mindlin, José Paulo Paes, Luciana Stegagno Picchio, Nilto Maciel, Oiliam José, Reynaldo Valinho Alvarez, Whisner Fraga, Yone Rodrigues. Figura no Dicionário de Escritores de Brasília, de Napoleão Valadares,18 e em Sob o Signo da Poesia: Literatura em Brasília, de minha autoria.19
Recebeu em 2001 o Prêmio Joaquim Norberto de Tradução, da União Brasileira de Escritores – RJ, por Poetas do Século de Ouro Espanhol, e em 2002 o Prêmio Cecília Meireles de Tradução, da mesma entidade, pelas Rimas de Bécquer.
Sendo a tradução de poesia o campo em que particularmente se notabiliza o seu labor literário, não posso terminar esta oração sem recordar-lhes um exemplo maior, tirado de Poesia Francesa: Pequena Antologia Bilíngüe. Leiamos a sua belíssima versão do belíssimo soneto “Recueillement”, de Charles Baudelaire:
  RECOLHIMENTO
Sê sábia, ó minha Dor, e fica sossegada.
Tu querias a Tarde, ei-la: já ao casario
Se abraça uma atmosfera envolvente e velada,
A alguns trazendo a paz, aos outros desvario.
Enquanto dos mortais a sórdida manada,
Escrava do Prazer, esse verdugo frio,
Vai colher o remorso em festa degradada,
Minha Dor, dá-me a mão, vem comigo, eu te guio
Para longe daqui. Vem ver como pendeu
O Tempo, em veste anciã, sobre os balcões do céu;
Subiu da água profunda o Pesar sorridente;
O Sol, já moribundo, escondeu-se e descansa,
E, qual longo sudário a se arrastar no Oriente,
Escuta, amiga, escuta: a doce Noite avança...
É esse, em tosco debuxo, o poeta e tradutor que passa a enriquecer a Academia de Letras do Brasil, na Cadeira n.º XXII, de que é patrono Antônio de Alcântara Machado, objeto de seu substancioso discurso de posse. Recebemo-lo de braços abertos, pelos seus méritos de escritor, nacionalmente reconhecidos, e realçados por suas altas qualidades humanas.
Bem-vindo a esta Casa, José Jeronymo Rivera.

NOTAS
1.                      Codesul, Curitiba, 1987.
2.                      Número de agosto de 1992.
3.                      Folha da ANE, julho de 1992.
4.                      Ib., novembro de 1992.
5.                      Códice, Brasília, 1994.
6.                      André Quicé, Brasília, 2003.
7.                      André Quicé, Brasília, 1995.
8.                      Thesaurus, Brasília, 1998; 2.ª ed. no prelo.
9.                      Id., 1999.
10.                  Embaixada da Espanha / Thesaurus, Brasília, 2001.
11.                  FAC – Fundo da Arte e da Cultura, Secretaria de Cultura do DF / Thesaurus, 2003.
12.                  Embaixada da Espanha / Thesaurus, Brasília, 2000.
13.                  Thesaurus, Brasília, 2002.
14.                  Edições Galo Branco, Rio de Janeiro, 2002.
15.                  Instituto Camões / Embaixada de Portugal na Argentina / Thesaurus, 2002.
16.                  Thesaurus, Brasília, 2003.
17.                  Círculo de Estudos Clássicos de Brasília, 2003.
18.                  André Quicé, Brasília, 1994; 2.ª ed. 2003.
19.                  Thesaurus, Brasília, 2003.
B6/18VI4