quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Viagem delicada entre a Fantasia e a Realidade

Com este título saiu a crítica de Ivo Cardoso, no caderno Prosa & Verso do jornal O Globo de 4 de outubro de 2014, sobre o livro Belo como um Abismo, de Elias Fajardo, que será lançado em Leopoldina na próxima sexta-feira, dia 31 de outubro, no Museu Espaço dos Anjos, às 19 horas, como parte das Homenagens pelo Centenário de Morte de Augusto dos Anjos.

Ei-la:

"Há mais coisas entre o Céu e a Terra, Horácio, do que podemos imaginar” (Hamlet. Ato 1, cena 5). “Belo como um abismo”, novo romance de Elias Fajardo, é um sopro de vento fresco, que rompe o ar sufocante que cerca boa parte dos lançamentos recentes de ficção nacional. Deve fazer a alegria dos que amam a narrativa não-realista, em vez de histórias envelhecidas, engessadas.

Os acontecimentos do livro se passam em 1987, a maioria no Rio de Janeiro. Os personagens centrais são Otávio e Aparecida, um casal entrando nos 40 anos, juntos há 15 — agora em estado de desamor. Otávio é bancário, caixa do Banco do Brasil; sonhador, não consegue fechar as contas no fim do expediente. Vive obcecado em escrever um poema definitivo, mas do qual só tem o título — o que dá nome ao romance. Aparecida, ex- militante de esquerda, já trabalhou numa repartição pública. Desempregada, vende calcinhas para as amigas, para ajudar nas contas da casa do Grajaú, na Zona Norte do Rio. Figuras típicas de uma classe média que acabou.

Há outros personagens importantes. Jurema, mãe de Aparecida, é cartomante-vidente; diz que incorpora a pombajira Maria Padilha, e, na casa do Andaraí, na Zona Norte, joga búzios para suas clientes da Zona Sul. Sente-se uma charlatã no ofício, mas vai em frente. Temos também Flávio, filho de Jurema, irmão de Aparecida. Aos 30 anos, professor de Português em escolas secundárias, nao se decide entre dois papeis, quanto ao sexo. Dá a impressão de pensar que a vida sexual independe de gênero. Este elenco é completado por Emily, uma gata vira-lata, de “perfil egípcio”, do casal do Grajaú. Que recebe encarnações vindas do passado distante.

A narrativa gira ao redor de Otávio, que tem o dom da ubiquidade. Pode estar, ao mesmo tempo, em casa e em Benares, na Índia; no trabalho e em Rano, na Indonésia. Seu duplo transporta-se com facilidade para outros tempos e para outras épocas. O narrador explica: “a chave do mistério foi acionada novamente, e vai abrir mil portas, algumas pesadas.” O leitor aprende: “O dom da ubiquidade tem vantagens e desvantagens. (... ) No início assusta, sobretudo nas passagens de um tempo para outro (...) Depois o ubíquo se acostuma. Apenas salta de paraquedas, e cai noutra vida.”

As viagens astrais de Otávio se concentram em duas Emilies: a inglesa Brontë ( 18181848), autora de “O morro dos ventos uivantes”; e a poeta americana Dickinson ( 18301886). Fazem um trio com a gata Emily. O livro narra, com delicadeza, fatos da vida atormentada das duas escritoras, em seus encontros com Otávio, durante as viagens astrais.

Na trama, os mortos e os não-nascidos (há uma filha de Otávio e Aparecida, Clara, neste estado) convivem com naturalidade. Perto do desfecho, que mudará a vida de todos, Aparecida diz não acreditar “nas babaquices de astral e sobrenatural” de Otávio. O narrador sai em defesa de seu personagem: “o sobrenatural é apenas o natural revelado”. Lembremos nós, aqui nesta resenha, de Machado, no espantoso “Memorial de Aires”: “Tudo é possível; neste e nos outros mundos”.

Nesta clave, em que nunca se sabe onde começa a realidade, e onde termina a fantasia; o que é real e o que é imaginário; sem unidade temporal e espacial; entrelaçam-se, de forma menos ou mais dramática, o destino dos personagens, amorosamente criados por Elias Fajardo.

Como numa peça musical, a veloz coda, que precede as cenas finais, muda de tonalidade e de andamento. O ritmo agora é suave, pastoral. Num clima sereno, num jardim, uma fada aparece diante de Otávio. Uma epifania. Não vou revelar o que acontece. Melhor que leiam.

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