segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

José Jeronymo Rivera: poeta e tradutor

Anderson Braga Horta
In: Do que É Feito o Poeta
Thesaurus, Brasília, 2014 (no prelo). 


Academia de Letras do Brasil, Brasília,
em 11 de agosto de 2004.

No remoto ano de 1950, numa pequena cidade mineira da Zona da Mata, um grupo de adolescentes, vindos de diversos pontos do Estado e do País, reuniu-se como que por obra do acaso, e essa reunião foi cimentada por afinidades logo percebidas, que imediatamente se transformaram em amizade. Era a veneranda cidade de Leopoldina, onde, um quarto de século antes, freqüentara o então Ginásio Leopoldinense o jovem português Adolfo Correia da Rocha, que mais tarde, de volta à pátria, brilharia como estrela literária de primeira grandeza, com o nome de Miguel Torga; era a tradicional e culta Leopoldina, onde, no ano que marcou o início da 1.ª Guerra Mundial, sofreu seus últimos dias o grande poeta do Eu, o paraibano Augusto dos Anjos.
Os rapazes que então se encontravam, atraídos pela boa fama do Colégio Leopoldinense, dir-se-ia que só então chegavam, de fato, ao termo do processo de nascimento. Com efeito, experimentariam, a partir dali, as primeiras amizades verdadeiras, desvinculadas dos folguedos infantis. Longe de casa, tiveram então um começo de vida independente. Primeiras responsabilidades. Para alguns, como José Jeronymo Rivera e eu, primeiro trabalho ¾ professores que fomos de jovens internos do Seminário. Primeiros amores. Descobrimento da poesia.

No princípio era o caos. A noite tenebrosa

Cobria a imensidão sombria e silenciosa
Como um negro sudário, amortalhando o espaço,
Num amplexo fremente, em sepulcral abraço!...
- E Deus criou a luz! E logo o mundo inteiro
Banhou-se em resplendor, e um celeste chuveiro
Dos astros derramou-se, em profusão brilhante,
Por sobre a Terra nua, agreste e deslumbrante.
- E Deus criou a vida! E as árvores surgiram
Em bosques de verdura, e o deserto cobriram!

De peixes povoou-se o oceano azul e calmo.

- E toda a criação, entoando ardente salmo,
Glorificava o Ser onipotente e bom

Que a tudo concedera o doce e suave dom

De gozar a beleza e a liberdade e a paz
Deste Éden de delícia e de ventura tais!
Os pássaros no céu cantavam docemente
Festivos madrigais, num voejar fremente...
As flores em botão, nos bosques, entreabriam
As pétalas sorrindo, e os colibris desciam
Do espaço p’ra beijar os cálices floridos...
Das fontes a brotar, filetes coloridos,
Refletindo o luzir do Astro-Rei no Infinito,
Banhavam-se de prata, em misterioso rito...

E tudo era alegria... e, entanto, o Criador

Sentiu que embora belo e cheio de calor
O mundo era imperfeito: inda faltava alguém
Que viesse completá-lo, e desfrutar também
A doce suavidade, a paz do Paraíso...
- E o homem foi criado ¾ e logo, num sorriso,
De fé e de esperança envolveu toda a Terra
E o mar, e o vale, e a mata, e a resplendente serra...
Cito versos de Rivera, dos que escreveu naqueles primórdios de riquíssima semeadura. A esses não deu prosseguimento. Por quê? Não sei, mas estou a imaginar se não desejaria o jovem poeta, inconscientemente, manter-se in æternum nos alvissareiros, nos doces inícios, com as suas lutas, é fato, mas ainda não com as desamparadas batalhas em que a vida costuma exercitar os seus filhos.
A citação não é sem propósito. Leopoldina foi para nós, de certa maneira, o começo do mundo. E que bom que esse começo tenha sido poético, repleno de fé no ser humano e na vida.
Daquele pugilo de adolescentes que ali se reuniam para levar o mundo nos ombros é preciso lembrar alguns nomes, pelo menos os dos mais afinados ao diapasão da poesia. Iniciavam todos a marcha do país da esperança para o das realizações (e das frustrações, ai de nós!), e o rito de passagem era oficiado pelas musas. Para a maioria o rito se perdeu nas primeiras curvas do caminho; mas para uns poucos o sacrifício poético (sacrifício, aqui, no sentido de oferenda, não de martírio) seria por toda a existência.
Junto de José Jeronymo orbitavam a vida: Deodato, seu irmão, dois anos mais moço - que, de Leopoldina e do Rio, aportaria a Brasília e daqui, logo que se implantou a ditadura, ganharia o mundo, para curtir longo exílio; Hélcio Campomizzi, que se formaria em Odontologia e em Medicina e teria a trajetória prematuramente truncada pelo coração explosivo; José Herberto Dias, que também passaria por este altiplano, sem nestes cerrados lançar raízes; Luiz Henrique Pessina, que, devotado antes à poesia das formas que à das palavras, se tornaria arquiteto, abrilhantaria o magistério da profissão em Brasília e está hoje entre nós; Amaury Pacheco, representando outra vertente nessa cadeia em que a comunidade maior era, afinal, a da amizade  - engenheiro, constituiria seu destino em terras fluminenses; e outros tantos amigos, e amigas, cuja relação devo em tempo sustar, para não inundar esta hora de nomes plenos de sentido para Rivera - e para mim - , mas não para a maioria dos amigos que nos prestigiam com sua presença.
Algumas outras figuras, entretanto, quero ainda lembrar, para dar uma idéia da atmosfera humana que insuflava aquele punhado de quase-meninos:
- Assim meu colega de turma Sebastião Murilo... de quê, mesmo? os nomes vão-se apagando da memória... Sebastião Murilo Pereira de Oliveira, negro e tímido, contrastando com o muito branco e extrovertido Gustavo Monteiro de Castro Júnior, poetas ambos, ambos demasiado cedo colhidos.
- O dentista Murilo Monteiro de Castro (quantos Murilos poetas em Minas!), que se foi também prematuramente, afogado, em meio a férias que gozava em São Pedro dos Ferros. Esse dentista-poeta, morto sem ver seus versos publicados, dando, certa feita, atendimento profissional a Rivera, deu-lhe de quebra ¾e a mim, que o acompanhava¾ eloqüente atendimento versífico, discorrendo com proficiência sobre a mecânica do alexandrino, que porfiávamos por dominar.
- O desenfreado, pálido, estranho, solitário Haroldo Barreto, sonetista de valor, que saía da toca para, violino em punho, acompanhar-nos em nossas escapadas vespertinas ou noturnas.
- René Monteiro de Castro, advogado, que se unia a nós, tão mais moços, e conosco fraternizava e conosco se confundia, talvez por encontrar em tal companhia o universo de sonho, de primavera, de liberdade e de culto às letras, que alhures não via...
Do corpo docente destacavam-se:
- Joaquim Guedes Machado, português, professor de Matemática (que já o fôra de meu pai), homem de sensibilidade, violinista, famoso pela vivacidade intelectual e por certa truculência (que já encontramos atenuada) para com os alunos relapsos. Conta-se que chegou a botar para fora, ou melhor, jogar fora de classe, pela janela, um ou outro mais nonchalant ou mais atrevido. (Amenize-se: as janelas eram baixas... Davam para um corredor interno aberto em direção ao pátio.)
- Seu amigo, e antípoda pelo temperamento manso e reservado, com quem decerto recordava passagens de sua vida no além-mar, Monsieur Rodolphe Gibrat. Lecionava Francês e Espanhol.
- Lydio Machado Bandeira de Mello, advogado, poeta, matemático e filósofo. Impressionava com o título de um de seus livros ¾Prova Matemática da Existência de Deus¾ e com suas divagações sobre uma espécie de memória do Universo contida nas raias de hidrogênio espalhadas pelos espaços. Publicou vários livros, alguns caprichosamente manuscritos. Fez brilhante carreira em Belo Horizonte, como professor universitário.
- Oiliam José, historiador, lecionava também Filosofia. De modos ascéticos, disciplinadíssimo, severo, dedicado. Vive hoje na capital do Estado. Autor de livros de história e de poesia, é membro e secretário perpétuo da Academia Mineira de Letras.
- Hamil Adum, professor de Inglês. Competente, singularizava-se por fazer boa camaradagem com os discípulos.
- Geraldo de Vasconcellos Barcellos, poeta. Dava aulas de Português, Biologia e Química. Entre esses extremos, distinguia-se por bem orientar e estimular, poeta que era, os bardos al primo canto. Deodato Rivera, já no Rio de Janeiro, em 1996, organizou um mutirão de ex-alunos para editar um de seus livros, Para Elza, de que me coube o prefácio.
A temida Professora Regina Monteiro de Castro (de Desenho e Francês), Dona Olimpinha, Dona Belinha e Dona Judith, esposa do Professor Machado, davam a nota feminina no magistério.
Monsenhor Guilherme de Oliveira, o Monsgo, como o chamávamos, devido à maneira abreviada com que se assinava, não lecionava, mas era o diretor do Colégio. Muito pequeno, franzino e tranqüilo, sabia fazer-se estimado e respeitado.
Dentre as pessoas gradas da cidade com que José Jeronymo mantinha relacionamento mais chegado recordo o Prof. Alziro Carvalho, antigo diretor do Colégio, e o Dr. Castellar Modesto Guimarães, promotor de justiça.
Em 1950 estávamos no internato José, Deodato e eu. Era um internato camarada. Como tínhamos bom aproveitamento escolar, davam-nos permissão para sair praticamente a semana toda, de modo que podíamos jogar nossa sinuca, tomar nossa cerveja e... namorar. O descobrimento do amor não podia deixar de se refletir na poesia, igualmente recém-descoberta, de Rivera. Quero ler uma dessas primícias, que bem reflete o halo românico em que nos movíamos, e cujas qualidades mostram o injustificável de ter o autor interrompido por décadas o exercício do verso:

VISÃO DE AMOR

Do firmamento no véu,
Em cada estrela do céu
- Dos astros no resplendor -
No azul transparente e claro,
Zimbório precioso e raro,
- Em tudo te vejo, amor!
                   No despertar da manhã,
                   Quando a natura louçã,
                   Sentindo o morno calor
                   Do sol que nasce distante
                   Acorda, alegre e vibrante,
                   - Em tudo te vejo, amor!
Nas verdes ondas do mar,
Murmurando, sem parar,
Com leve e brando rumor,
Cantigas doces e belas
Aos barcos de brancas velas,
- Em tudo te vejo, amor!
                   Quando, em tarde merencórea,
                   Ouço de amores a história
                   Na voz de um meigo cantor
                   De volta ao ninho, arrulhando,
                   A companheira chamando,
                   - Em tudo te vejo, amor!
Na pétala perfumada
Da flor à beira da estrada
- Encanto do viajor
Que vai pela vida afora,
De dores a alma em pletora,
- Em tudo te vejo, amor!
                   Nas águas claras do rio,
                   Que em turbilhão ou num fio,
                   Em silêncio ou com fragor,
                   Vão correndo à luz do sol,
                   Saudando um novo arrebol,
                   - Em tudo te vejo, amor!
Da noite na paz tranqüila,
Enquanto o orvalho destila
Gotas na pét’la da flor,
E a lua deixa no rastro
Cintilações de alabastro,
- Em tudo te vejo, amor!
                   No esplendor da primavera,
                   Quando em luzes a tapera
                   É toda vida e calor,
                   E o coro da natureza
                   Entoa um hino à beleza,
                   - Em tudo te vejo, amor!
No marulhar da cascata,
Alegre chuva de prata
De imaculado lavor,

Fulgindo em festas ardentes

De brilho e espumas albentes,
- Em tudo te vejo, amor!
                   Enfim, em tudo que encerra
                   - No céu, no mar ou na terra ¾
                   A obra do Criador,
                   - Em tudo tu estás presente!
                   Em tudo est’alma te sente!
                   - Em tudo te vejo, amor!...
                  
Em 1951 sairíamos para uma pensão, em casa de D. Sirene, próximo do Colégio, José, Deodato, Luiz Henrique, Amaury e eu, indo juntar-se ao clã alguns mais moços.
Falei em bom aproveitamento escolar. No caso de Rivera, a expressão fica longe da realidade. Aproveitamento máximo tem melhor cabimento. Desde o primeiro instante ele se revelou aluno excepcional. Sua média final era 10, invariavelmente, em todas as matérias. No Colégio Leopoldinense só tinha havido um caso assim, protagonizado por uma moça. Eu, não conheço nenhum outro.
Já era, naquela época, leitor incansável. Nos primeiros tempos, no internato, ensaiaram apelidá-lo Jornaleiro, porque era visto sobraçando grossos jornais do Rio e de São Paulo, jornais que lia religiosamente, com particular interesse nos suplementos literários. Soube desde logo canalizar para a vida em comum o seu grande potencial intelectual, ao invés de usar apenas para passar de ano, e para gozo interno, essa extraordinária capacidade de ler, aprender e fruir. Entre maio e outubro de 1953, junto  com Deodato, figurando ele como diretor e o irmão como secretário, tirou sete números do Três de Junho, “órgão dos alunos do Colégio Leopoldinense”, nos quais acolheu múltipla contribuição, colaborando largamente ele mesmo com editoriais, poemas, crítica cinematográfica, notas literárias e políticas. Releio os primeiros versos que nele publicou (e em que já se nota a marca simbolista):

ESPECTROS

Nas asas virginais da Fantasia,
Entre nuvens de sonhos e desejos,
Ao som da magistral polifonia
De um festival de cores e de arpejos;
Vão passando, em fantástica harmonia,
Em meio a tempestades e lampejos,
As procissões do Amor e da Poesia
- Estranhos e patéticos cortejos

De ilusões, esperanças e quimeras,

Anseios de ternura incompreendida,
Farrapos de emoções da mocidade,
Lembranças de passadas primaveras,
Toda a existência humana resumida
Num cortejo de dor e de saudade...
A ida para Leopoldina fora inspirada aos dois irmãos pela experiência de um primo, Hermenegildo Villaça  - o Hermê - , com quem se reencontrariam em Brasília e que se tornaria, para mim, parte dessa irmandade adotiva. Villaça lá estivera alguns anos antes, mais para servir ao Exército no Tiro-de-Guerra 98 que por outros quaisquer motivos.
José Jeronymo Ribeiro Rivera - este o nome completo do nosso mais novo acadêmico¾ nasceu no Rio de Janeiro, no bairro de Vila Isabel. (Não nega a origem, amante que é da arte de Euterpe, desde a criada por Noel e companheiros de altitude em nossa melhor música popular, até os clássicos de todo gênero: Bach, Mozart, Beethoven, Schubert, Schumann, Tchaikovsky e Verdi puxando o coro.) É filho de Emílio Vello Rivera e Helena Pinto Ribeiro Rivera.
O avô paterno, Geronimo Vello Rivera, era natural de Covelo, província de Pontevedra, na Galiza, Espanha. Nascido em 1874, teria vindo muito jovem para o Brasil, como ajudante de padeiro. Aqui se casou com Raquel dos Santos Rivera, provavelmente originária da província de Trás-os-Montes, Portugal. (Consta que essa avó, antes da relativa prosperidade que viria a conquistar o casal, teria engomado as camisas de Bilac.) Geronimo Vello trabalhou sempre no ramo da panificação, chegando a sócio de vários estabelecimentos, um deles na Rua da Matriz, em Botafogo, onde nasceu Emílio. Fixou-se no Largo do Pechincha, em Jacarepaguá, onde fundou a Padaria Rivera, existente até hoje. Faleceu em 1939, seguido por Raquel sete anos mais tarde. Foi a herança desse avô padeiro e dessa avó engomadeira que possibilitou os estudos de José e Deodato.
O avô materno, José Pinto Ribeiro, médico, paulista, casou-se em Barra Mansa com Maria Ramos Pinto Ribeiro. Foi prefeito daquela cidade fluminense, onde há rua com seu nome, e deputado estadual. Ao se mudar, viúvo, para o Rio, levava três filhas: Helena, Adélia (que se tornou irmã de caridade e foi madrinha de batismo de Rivera, vindo a falecer com pouca idade) e Angelina, falecida em 2004, aos 95 anos.
Segunda interferência de Polímnia, ou augúrio de poesia, entre os ancestrais de Rivera: a menina Helena foi brindada com um poema por Luís Pistarini, amigo de seu pai. Desse poeta, em nosso tempo de estudantes, algo ainda se podia ler em uma que outra antologia. Seu nome vai submergindo na maré montante do oblívio. O poema, datado de Barra Mansa, 1916, é, pois, dirigido a uma garota de 11 anos. Vale a pena recolher esses versos singelos:

 

 

 À HELENA

            Encantadora Filhinha do Dr. Pinto Ribeiro

Helena... Angélica Helena

Tem um quê celestial...
É uma graciosa açucena,
É um casto lírio do val!
Que suave inocência bóia
Nos seus olhos virginais!
Sua homônima de Tróia
Nunca teve olhos iguais!
A boca fresca e mimosa,
Qual bipartida romã,
Recorda um botão de rosa
Pompeando ao sol da manhã...
Helena Pinto Ribeiro
Tem onze anos... Onze só,
E um rostinho feiticeiro...
Mas... nunca teve um coió!
Também pudera!Tão linda,

Mas, tão criança também!

Como flirtar quem ainda
Mal na vida entrando vem?
Não! disso não cuida a Helena,
Pois ela é a primeira a ver
Que, sendo assim tão pequena,
Tem mais coisas a fazer...
Por exemplo: ir ao colégio...
Pegar um livro... estudar...
Ah! seria um sacrilégio
Seu coração perturbar...
Deus a livre vigilante
Da moda que hoje aí vai...
Que por ora ¾  boa e amante ¾
Só pense no seu papai!
Que seja, das irmãzinhas
Junto, a melhor das irmãs,
Formando assim três gracinhas,
Três belas rosas louçãs!
Que de seu pai seja o orgulho,
Toda a casa a governar,
Dispondo, mas sem barulho,
As coisas no seu lugar!
E meiga, já substituindo
A santa que a deu à luz
E ora descansa, dormindo,
Calma, à sombra de uma cruz...
Aliás, para isso é preciso
Que Helena saiba fazer
De seu lar um paraíso,
E assim suavize o sofrer
Do homem bom que, só no mundo,
Só com elas três ficou,
E o golpe que, de tão fundo,
Não sei como não o matou!
Eis o que à Helena desejo
De todo o meu coração,
Deponho-lhe um casto beijo
Na linda e pequena mão!
Emílio e Helena casaram-se em Aparecida, na antiga basílica, em 21 de janeiro de 1932. Tiveram três filhos: José Jeronymo, nascido em 12 de junho de 1933; Deodato, em 8 de junho de 1935; e Raquel, que, nascida em 1936, mal passou dos três meses.
Emílio era comerciante, tendo mantido diversos negócios. Dentre suas atividades profissionais destaca-se a de sócio-gerente do laboratório cinematográfico Logograph, localizado em plena Cinelândia. Traduzia do alemão, em que era autodidata. Helena faleceu em Barbacena, em 1942, aos 37 anos. Emílio no Rio de Janeiro, em 1943, aos 34.
José expressaria a dor da orfandade precoce num soneto, em que julgo notar alguma reminiscência de Antero, um dos poetas que admirávamos e amávamos:
      MÃE

Quando, em meio à tristeza desta vida,

Eu me vejo sozinho e abandonado,
Sentindo o coração pulsar, cansado,
¾ Mortas as ilusões, e a fé perdida;
Quando, ansioso, procuro no passado,
No Ideal que sonhei ¾  visão sentida,
Um consolo à minha alma dolorida
¾ Um pouco de carinho ao desgraçado,
Vejo um vulto celeste e silencioso
Chegar-se a mim, beijar-me a fronte exangue,
Banhando-me de luz e suavidade...
És tu, ó mãe querida, o anjo bondoso
Que me secas as lágrimas de sangue
A brotarem da fonte da saudade...
Os irmãos José e Deodato ficaram sob a guarda da avó Raquel e, falecida esta, dos pais de Hermenegildo, seus tios Alfredo Gomes Villaça e Sylvia Rivera Villaça. Estudaram como internos no Colégio de São Vicente de Paulo, onde se acha atualmente o Santuário da Medalha Milagrosa, no bairro da Tijuca. Seus estudos foram entrecortados por períodos de interrupção até a ida para Leopoldina, onde, além de reatá-los, prestaram o serviço militar.
Datam dessa época, aliás, as primeiras experiências enológicas do futuro Dr. Rivera, faturadas com o mais puro vinho das adegas vaticanas. Cabe aqui este parêntese bem-humorado para relatar que nosso novo acadêmico, antigo coroinha e congregado mariano, que hoje abriga suas dúvidas sob a capa do agnosticismo, escapou por pouco de ajudar um papa a rezar missa. Com efeito, o menino de 1942 acolitou diante do altar a D. Benedetto Aloisi Masella, Núncio Apostólico no Brasil, mais tarde camerlengo na Santa Sé e candidato (malogrado) ao trono de sumo pontífice. E andou provando, à sorrelfa, do seu delicioso vinho de missa.
Passemos a um interregno árido talvez, mas necessário, para dizer das atividades profissionais do escritor que nos honramos de receber.
De volta ao Rio, em 1954, José deu aulas particulares, passou onze dias como bancário, na Sulacap – Sul América Capitalização, trabalhou na Gráfica Riex e, aprovado em concurso do Dasp, foi nomeado oficial administrativo e lotado na Casa da Moeda, Ministério da Fazenda, em junho de 1955. No ano seguinte, transpôs o vestibular para a Escola Nacional de Engenharia. Terminou o curso em 1960. Não contente, formar-se-ia ainda em Administração de Empresas (1969) e em Economia (1979), pelo Ceub, e faria os seguintes cursos de especialização: Engenharia Econômica, Cepes, Brasília, 1972; Administração Profissional, DNER, Brasília, 1973; Project Appraisal, University of Strathclyde, Glasgow, 1977. Veio para Brasília em março de 1961, como Engenheiro Fiscal da Novacap. Exerceu, entre outras funções, as de chefe do Departamento Econômico (depois Terracap) e, em 1969/70, diretor-financeiro da Shis – Sociedade de Habitação de Interesse Social. Exerceu o magistério no Elefante Branco, tendo sido paraninfo da primeira turma do 2.º ciclo noturno. Em 1962 foi convidado a lecionar Física no Curso de Arquitetura da UnB, onde ficou até 1964. Nesse ano, passou a fazê-lo no Ciem, vinculado à UnB, licenciando-se em 1968. Lecionaria também no Ceub e na AEUDF (Administração da Produção e Planejamento). Nomeado, por concurso, Técnico de Tributação, mais tarde Auditor Fiscal do Tesouro Nacional. Serviu no Gabinete do Ministro da Fazenda de 1974 a 1979, e deste ano a 1985 no do Ministro do Planejamento. Voltou ao Ministério da Fazenda, donde, aposentado como Secretário da Receita Federal Adjunto, saiu para chefiar gabinete na Câmara dos Deputados, situação em que se encontra até hoje. É co-autor, ao lado de Frederico Máximo Vianna Barbeitas, Guenther Jung e Jupy Barros de Noronha, do livro Fontes de Recursos Federais para Estados e Municípios
Findo esse interregno, que em verdade só tem de árido o resumo dos fatos, riquíssimos, por minhas pobres palavras, passemos a outro, inequivocamente fecundo em flores e frutos. Jeronymo casa-se em 1962. A esposa, Naly Sá Roriz Rivera, advogada e professora, dá-lhe por prole cinco meninas: Helena Maria, Andréa Lúcia, Ana Luisa, Tania Cristina e Flávia. Como se não bastassem tantas mulheres, vieram quatro netinhas: Mayra, Fernanda, Anita e Isadora. Único varão nessa descendência, e penúltimo broto até agora, o menino Tiago.
Jeronymo e Naly, que se casaram no mesmo mês em que eu e Célia ¾nós no começo, eles no fim de junho¾, foram nossos padrinhos de casamento. Amigos fraternos, acabamos num compadrio duplo: eu e minha mulher somos padrinhos de sua filha caçula.
Como oferenda poética à afilhada ¾e, extensivamente, a toda a família¾ lavrei então estes versos:

SONETO PRECIOSO

PARA MINHA AFILHADA FLÁVIA

ou simplesmente

SONETO DE FLÁVIA

Flavinha — flâmea gema que cintila

livre de engaste, como a pura Idéia,
favo menor de quíntupla colméia,
fulva essência a agitar morena argila;
Flávia — de viva alfaia, fanopéia,
flama inquieta sem sombra de favila:
levem-te sempre à flor de água tranqüila
brandas brisas em fúlgida coréia.
E quando em pleno oceano, além da aurora,
nem vagas vejas, nem siroco aflante:
flavo favônio a afável mar se alie.
E assim, feliz, Flavinha, vida em fora,
sempre no amor dos teus —neste flamante
lar das cinco meninas— Deus te guie.
Em Leopoldina José Jeronymo Rivera faz a sua iniciação poética ativa. Em Leopoldina, exercitando-se no aprendizado de línguas, ensaiou as primeiras traduções, ainda literariamente desambiciosas. A vida toda, desde que se alfabetizou, tem sido um competente devorador de livros. (O adjetivo é cabível, pois há os que lêem não-seletivamente, há os que lêem apenas para matar o tempo, e há os que lêem sem assimilar.) Em Brasília, carreira profissional organizada, família constituída, tendo viajado por quase todos os cantos da Terra, com todo aquele cabedal de letras, com toda essa experiência de vida, descobriu o veio de ouro de sua realização poética: a tradução de poesia. Agrada-me pensar que tenho alguma responsabilidade nisso. Em 1976, traduziu-me um “Madrigal” para o inglês. Figura a tradução em Capital Poems, antologia publicada pela Thesaurus em 1989, e na Folha da ANE, tirada por José Maria Leitão em computador.² Em 1987, com a filha Tania Cristina, passou para o francês “Invenção da Noite”,³ que assim ficou:
INVENTION DE LA NUIT
De ce silence et de cette ténèbre
j’édifie ma nuit
particulière et intransférible.
Il ne me faut pas d’inventer les étoiles,
elles s’éveillent et luisent d’elles mêmes.
Et à minuit une lune sombre
lève sa face d’argent à l’horizont
et verse dans mes yeux un pleur, un froid.
Verteu para o alemão o poeminha “Olhos”:4
AUGEN
Plötzlich finde ich
die gewaschte Schönheit  deinen Augen heraus.
       (Zwischen mir und den Schlaf
       du trägst eine Sonne in den Lippen
       und im Busen Venus.)
Deine Augen sind wie ein Himmel, daβ geregnet hat.
(Recentemente, já senhor de notável bagagem de tradução poética, transpôs esse mesmo poema para o grego moderno, que ora estuda. Devo renunciar a ler essa versão, pois para mim grego moderno é grego...)
Com poemas originais participou em duas obras coletivas: em Alma Gentil – Novos Sonetos de Amor, organização de Nilto Maciel,5 com “Refúgio”, “Depois...” e “Encantamento”; e na recente Antologia de Haicais Brasileiros, de Napoleão Valadares,6 com esta bela composição:
Serras, as cigarras
serram o ar primaveril.
Serragem? a chuva.
Com algumas traduções do francês entrou em Caliandra – Poesia em Brasília,7 em 1995.
Daí por diante, o tradutor não parou mais. E nos deu, nesta ordem: Poesia Francesa: Pequena Antologia Bilíngüe,8 sua estréia em obra individual, “já em odor de mestria”, conforme disse eu alhures (textos de apresentação assinados por Arino Peres, por João Carlos Taveira e por mim); Cidades Tentaculares, de Émile Verhaeren;9 Rimas, de Gustavo Adolfo Bécquer, com estudo introdutório de José Antonio Pérez Gutiérrez;10 Gaspard de la Nuit, poemas em prosa de Aloysius Bertrand, com prefácio de Xavier Placer (redigi as orelhas).11 Em colaboração com Fernando Mendes Vianna e comigo, assina as traduções de Poetas do Século de Ouro Espanhol, estudo introdutório de Manuel Morillo Caballero;12 Victor Hugo: Dois Séculos de Poesia13 e O Sátiro e Outros Poemas,14 estudo introdutório de Mendes Vianna; comigo, com José Antonio Pérez, José Santiago Naud, Kori Bolivia, Manuel Graña Etcheverry, Rodolfo Alonso, Rumen Stoyanov e Ángel Crespo (in memoriam), Poetas Portugueses y Brasileños de los Simbolistas a los Modernistas (versão para o espanhol; organização do saudoso José Augusto Seabra);15 com José Augusto Seabra e comigo, Antologia Pessoal de Rodolfo Alonso;16 comigo, 25 Sonetos Descaradamente Eróticos, de José Antonio Pérez.17 Tem prontos para o prelo: em colaboração, uma coletânea de poetas ibero-americanos, a ser editada pela Associação de Adidos Culturais em Brasília; singularmente, La Voz a Ti Debida, de Pedro Salinas. Mencione-se, enfim, sua colaboração em periódicos como o Boletim da ANE, a Revista de Poesia e Crítica, a Revista da Academia Brasiliense de Letras, Literatura e Poesia para Todos, e sua atividade de conferencista na Associação Nacional de Escritores.
Sua fortuna crítica arrola textos impressos de Adelto Gonçalves, Afonso Ligório Pires de Carvalho, Alexandre Machado, Álvaro Alves de Faria, Antonio Carlos Osorio, Antonio Olinto, Branca Bakaj, Fernando Py, Hildeberto Barbosa Filho, Manoel Hygino dos Santos, Mário Teles de Oliveira, Vili Santo Andersen, Wilson Martins, jornal Linguagem Viva, a par de comentários epistolares de Adelaide Petters Lessa, Alexei Bueno, Alphonsus de Guimaraens Filho, Aluízio Valle, António Campos, Antônio Houaiss, Carlos Alberto Abel, Carlos Nejar, Cleonice Berardinelli, Dalila Pereira da Costa, Enéas Athanázio, Fausto Cunha, Gerson Valle, Ivan Junqueira, Ivo Barroso, José Mindlin, José Paulo Paes, Luciana Stegagno Picchio, Nilto Maciel, Oiliam José, Reynaldo Valinho Alvarez, Whisner Fraga, Yone Rodrigues. Figura no Dicionário de Escritores de Brasília, de Napoleão Valadares,18 e em Sob o Signo da Poesia: Literatura em Brasília, de minha autoria.19
Recebeu em 2001 o Prêmio Joaquim Norberto de Tradução, da União Brasileira de Escritores – RJ, por Poetas do Século de Ouro Espanhol, e em 2002 o Prêmio Cecília Meireles de Tradução, da mesma entidade, pelas Rimas de Bécquer.
Sendo a tradução de poesia o campo em que particularmente se notabiliza o seu labor literário, não posso terminar esta oração sem recordar-lhes um exemplo maior, tirado de Poesia Francesa: Pequena Antologia Bilíngüe. Leiamos a sua belíssima versão do belíssimo soneto “Recueillement”, de Charles Baudelaire:
  RECOLHIMENTO
Sê sábia, ó minha Dor, e fica sossegada.
Tu querias a Tarde, ei-la: já ao casario
Se abraça uma atmosfera envolvente e velada,
A alguns trazendo a paz, aos outros desvario.
Enquanto dos mortais a sórdida manada,
Escrava do Prazer, esse verdugo frio,
Vai colher o remorso em festa degradada,
Minha Dor, dá-me a mão, vem comigo, eu te guio
Para longe daqui. Vem ver como pendeu
O Tempo, em veste anciã, sobre os balcões do céu;
Subiu da água profunda o Pesar sorridente;
O Sol, já moribundo, escondeu-se e descansa,
E, qual longo sudário a se arrastar no Oriente,
Escuta, amiga, escuta: a doce Noite avança...
É esse, em tosco debuxo, o poeta e tradutor que passa a enriquecer a Academia de Letras do Brasil, na Cadeira n.º XXII, de que é patrono Antônio de Alcântara Machado, objeto de seu substancioso discurso de posse. Recebemo-lo de braços abertos, pelos seus méritos de escritor, nacionalmente reconhecidos, e realçados por suas altas qualidades humanas.
Bem-vindo a esta Casa, José Jeronymo Rivera.

NOTAS
1.                      Codesul, Curitiba, 1987.
2.                      Número de agosto de 1992.
3.                      Folha da ANE, julho de 1992.
4.                      Ib., novembro de 1992.
5.                      Códice, Brasília, 1994.
6.                      André Quicé, Brasília, 2003.
7.                      André Quicé, Brasília, 1995.
8.                      Thesaurus, Brasília, 1998; 2.ª ed. no prelo.
9.                      Id., 1999.
10.                  Embaixada da Espanha / Thesaurus, Brasília, 2001.
11.                  FAC – Fundo da Arte e da Cultura, Secretaria de Cultura do DF / Thesaurus, 2003.
12.                  Embaixada da Espanha / Thesaurus, Brasília, 2000.
13.                  Thesaurus, Brasília, 2002.
14.                  Edições Galo Branco, Rio de Janeiro, 2002.
15.                  Instituto Camões / Embaixada de Portugal na Argentina / Thesaurus, 2002.
16.                  Thesaurus, Brasília, 2003.
17.                  Círculo de Estudos Clássicos de Brasília, 2003.
18.                  André Quicé, Brasília, 1994; 2.ª ed. 2003.
19.                  Thesaurus, Brasília, 2003.
B6/18VI4

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Uma explosão controlada


Anderson Braga Horta
In: Criadores de Mantras; Ensaios e Conferências.
Thesaurus, Brasília, 2007.


A meus mestres e condiscípulos de Leopoldina

Fui cedo iniciado nos mistérios da quarta dimensão que é o universo maravilhoso da palavra escrita. E nesse universo transtemporal e transmaterial aprendi a habitar simultaneamente mundos paralelos e a ser antípoda de mim mesmo. Para o menino imaginativo, cada livro era uma aventura; tornei-me um aventureiro insaciável. Naturalmente, muitas foram as leituras marcantes dessa fase: certa página de Humberto de Campos, um poema de Vicente de Carvalho, quilos de histórias em quadrinhos, romances, um ou dois filósofos abstrusos; mas, acima de todas, a obra infantil de Monteiro Lobato. Não pretendo me deter, contudo, nessas primeiríssimas e, de certo modo, passivas explorações literárias; quero antes falar de um dos livros que mais fortemente me ajudaram a estruturar uma experiência então nova para mim: a do fazer poético.


Anacronismo Fecundo


Trata-se de um dos mais antigos livros que conservo: data de 1951 a dedicatória que lhe apôs meu Pai. Não foi a primeira influência. Poetas inaugurais foram-me —além de meus próprios Pais— os representantes maiores de nossas gerações românticas, Castro Alves à frente. (Sobre estes, escrevi já um ou dois depoimentos.) Também não foi a última. Seguiram-se-lhe Alphonsus, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos (acerca dos quais tenho também escrito algo), sem falar no Camões, no Antero, no Guerra Junqueiro; e, num segundo momento de minha formação, os modernistas – Bandeira, Menotti, Drummond, Jorge de Lima, Cecília, Henriqueta. E Pessoa. Antes e depois dele, em suma, arrolaria ainda um bom número de antigos e modernos, clássicos e românticos, gregos e troianos (especialmente se portugueses ou brasileiros...). Elementos, todos eles, do meu caos particular (“que um dia, quem sabe, organizarei em águas, terras e céus” — atrevo-me a esperar, num poema de Cronoscópio).

O livro a que tenho me referido é uma amarelada brochura editada em 1949 (23.ª ed.) pela Francisco Alves: Poesias, de Olavo Bilac.

Alguém há de pensar, e talvez dizer, que Bilac, mais Castro Alves, enfim românticos, parnasianos, simbolistas e outras antiguidades —como influência literária— é dose excessiva de anacronismo para os anos cinqüenta, na culta cidade de Leopoldina, vizinha da verde Cataguases. Peço licença para discordar. Para mim, pessoalmente, essa formação tradicional (bastante mineira, penso eu, e com isto não reduzo o “espírito de Minas” a um obscuro conservantismo; ao contrário, tenho em mente o lastro que orienta o vôo livre de pássaros que se chamem Henriqueta Lisboa, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade), essa formação foi um longo e amoroso aprendizado. Era um mundo organizado, tudo no seu lugar; um mundo medido, comedido, de que proclamo saudade noutro poema do Cronoscópio (“Auto-Elegia”), bem como num soneto de Incomunicação (“Naquele Tempo”) de que transcrevo o terceto final:


“Perdi o ritmo dos poetas antigos,

perdi a música dos poetas antigos,

hoje sou duro e seco e sem romantismo.”;


não este caos em que estamos mergulhados (caos, todavia, de que sairá um cosmos, “um ordenado universo” — ouso novamente augurar, na citada “Auto-Elegia”). Não um mundo a que devêssemos pretender retornar, isso não; mas um mundo de onde podemos talvez trazer algum instrumento que nos oriente neste caos, nos ajude a compreendê-lo e, afinal, transcendê-lo, na construção de uma terceira e mais alta realidade.


Paixão e Rigor



Como disse, Castro Alves está no limiar de minha experiência poética. À semelhança de seu verbo genial procurei persistentemente plasmar-me, sob o influxo daquela exaltação generosa e brilhante. À sua lição de exuberância veio contrapor Bilac uma lição de rigor. (Não que faltasse ao romântico o senso de composição, ou ao segundo servisse a carapuça de mármore genericamente talhada para os “parnasianos”. Apenas extremo, em um e outro, características maiores.)

Ardente mas contida emoção. Exaltação e rigor, rigorosa paixão. Caos e cosmos. Acho que está aí o segredo de toda grande poesia, de toda grande arte. Bilac foi um de meus mestres nisto, que aprendi ao menos teoricamente: "A poesia é uma explosão controlada." (Seja-me perdoada mais esta autocitação.)

Vê-se logo que não me refiro ao Bilac da “Profissão de Fé”, nem ao das Panóplias, ainda excessivamente canônico, mas ao lírico, ao amoroso, ao erótico sem “apelações” de Via-Láctea, Sarças de Fogo e Alma Inquieta, ao épico d’O Caçador de Esmeraldas, ao contemplativo de Tarde.

A “Profissão de Fé” é um hino de amor à Forma, ao “Estylo”. O soneto “A um Poeta” (Tarde) é uma conclamação ao trabalho beneditino, paciente, solitário, perseverante, incansável, a fim de que



“Não se mostre na fábrica o suplício

Do mestre. E, natural, o efeito agrade,

Sem lembrar os andaimes do edifício:



Porque a Beleza, gêmea da Verdade,

Arte pura, inimiga do artifício,

É a força e a graça na simplicidade.”



Ambos os poemas se prestam excelentemente à ilustração do ideário parnasiano. Exemplificam bem o rigor formal, a ascese do poeta. Onde, porém, consegue o equilíbrio entre as forças polares aqui chamadas paixão e rigor é em poemas como O Caçador de Esmeraldas, cuja exaltação verbal muito o aproxima do grande romântico; no soneto a Bocage (“mestre querido”), canto de fidelidade à poesia e à língua portuguesa (também vigorosamente celebrada no soneto deste título); nos demais sonetos da Via-Láctea, destacadamente o famosíssimo n.º XIII — “Ora (direis) ouvir estrelas!” e o n.º XXIX — “Por tanto tempo, desvairado e aflito”, de minha predileção; em “A Avenida das Lágrimas”, de linguagem e efusão também românticas; e em inúmeras outras composições, muitas das quais vou arrolando aqui, para lembrar o volume dos poemas de nível excepcional deixados pelo velho Bilac: “O Julgamento de Frinéia”, “Súplica”, “Beijo Eterno”, “Pomba e Chacal”, “Nel Mezzo del Camin...”, “Inania Verba, “Virgens Mortas” , “Tercetos”, “In Extremis”, “Dentro da Noite”, “Campo Santo”, “Hino à Tarde”, “O Vale”, “As Estrelas”, “As Ondas”, “Microcosmo”, “Ressurreição”, “Benedicite!”, “Respostas na Sombra”, “Natal”, “Fogo-Fátuo”, “Perfeição”, “Um Beijo”; “Criação”, “Semper Impendet”, “Assombração”, “Diamante Negro”, “O Cometa”, “Diálogo”, “Avatara”, “Oração a Cibele”, “Sinfonia”.


No Limiar do Mistério


A quando e quando, rende-se o poeta à magia da aliterante música simbolista, como neste terceto magistral de “A Tentação de Xenócrates”:


“Tíbios flautins finíssimos gritavam;

E, as curvas harpas de ouro acompanhando,

Crótalos claros de metal cantavam...”


Notas simbolistas creio ver, por exemplo, em “Surdina” (Alma Inquieta) e em mais de um dos intensos sonetos de que está referta a Tarde do poeta. Cito a “Cantilena”, em versos de quatorze sílabas, e os alexandrinos de “Vila Rica” e “Os Sinos” (belíssimos).

Lembra-nos, finalmente, o clima simbolista a sensação de umbral que nos transmitem alguns dos sonetos mais altos da fase derradeira. Escolho para representá-la este magnífico “Introibo!”:



“Sinto às vezes, à noite, o invisível cortejo

De outras vidas, num caos de clarões e gemidos:

Vago tropel, voejar confuso, hálito e beijo

De causas sem figura e seres escondidos...



Miserável, percebo, em tortura e desejo,

Um perfume, um sabor, um tato incompreendidos,

E vozes que não ouço, e cores que não vejo,

Um mundo superior aos meus cinco sentidos.



Ardo, aspiro, por ver, por saber, longe, acima,

Fora de mim, além da dúvida e do espanto!

E na sideração, que, um dia, me redima,



Liberto flutuarei, feliz, no seio etéreo,

E, ó Morte, rolarei no teu piedoso manto,

Para o deslumbramento augusto do mistério!”



Concluindo, confesso que as Poesias de Bilac foram-me, em fundo e forma —como, à outra mão, o estro de Castro Alves—, uma das mais vívidas revelações e uma exigente escola, que reconheço e proclamo, e que —associada sempre à lembrança de Leopoldina, estrada de Damasco da minha poesia— me é grato agora recordar e reviver.