segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Roteiro Poético, Roteiro de Vida

Anderson Braga Horta
In: Testemunho & Participação: Ensaio e Crítica Literária.
Thesaurus, Brasília, 2005.



Originariamente, notas para um encontro
com estudantes da UnB, em 8.10.1980


É bom para um poeta, no meio do caminho, parar um pouco e rever alguns de seus passos; o que tem pensado e o que tem realizado em matéria de poesia.  É bom para o investigador do fenômeno poético ouvir o depoimento dos poetas, mesmo —e talvez principalmente, porque não contaminados de parti pris— quando lhes falte um sólido embasamento teórico.  É bom seja colhido o testemunho tanto dos poetas maiores quanto dos menores, ainda que apenas para confirmação do contraste.  Por último, e à parte toda vã filosofia, a verdade é que, a esta altura da vida, é bom lembrar...  E é isto que faço, para atender ao convite amigo e honroso de Heitor Martins e a pretexto de dizer qualquer coisa, perante estudiosos da matéria, sobre minha experiência no campo da poesia.  Pretendo fazê-lo resumidamente, como convém, e aproveitando fatos de minhas circunstâncias pessoais para recolocar em debate alguns problemas da criação literária.  Lanço-os, bem sei, condicionados pela minha ótica; assim, deve esta ser igualmente objeto do debate.

Os Versos mais Tristes do Mundo

O primeiro contacto que me lembra ter tido com a poesia foi a leitura do “Pequenino Morto”, de Vicente de Carvalho, em Vila Boa de Goiás, aí pelos meus oito anos.  Chorei como criança que era.

Hoje, relendo o poema, percebo como o poeta conseguiu, com extrema habilidade, dar ao hendecassílabo junqueiriano a tristeza exigida pelo assunto (à parte o fato de o assunto infundir sua tristeza no verso utilizado).  Ouçamos a estrofe inicial:

                    

Tange o sino, tange, numa voz de choro,

                     Numa voz de choro... tão desconsolado...

                     No caixão dourado, como em berço de ouro,

                     Pequenino, levam-te dormindo...  Acorda!

                     Olha que te levam para o mesmo lado

                     De onde o sino tange numa voz de choro...

                                    Pequenino, acorda!



Comparemos os versos do poeta santista com estes hendecassílabos de Guerra Junqueiro:


                     Vêm sanguinolentos gritos moribundos

                     Das soturnidades torvas do horizonte!


Ou com estes, também do autor de Os Simples:


                     Ai, há quantos anos que eu parti chorando

                     Deste meu saudoso, carinhoso lar!...

                     Foi há vinte?... há trinta?... Nem eu sei já quando!...

                     Minha velha ama, que me estás fitando,

                     Canta-me cantigas para me eu lembrar!...


A estrutura é a mesma em todos esses versos —tônicas na 5.ª e, naturalmente, na 11.ª sílaba—, e notabilizou-a o bardo lusitano.  Quase sempre, os versos dos poemas citados têm acentos secundários na 3.ª e na 9.ª   Não obstante, o andamento dos de Junqueiro é mais rápido que o dos de Vicente de Carvalho.  Por quê? Tão-só pela influência do assunto?  Haverá outros elementos influidores: a dimensão, a estrutura e o timbre dos vocábulos, o sistema rímico, a estrofação...

Lugar da Prosa

Li muita prosa também, desde Vila Boa, mas principalmente em Goiânia, onde prestei o exame de admissão e freqüentei o primeiro ano do Ginásio. Recordo uma página de Humberto de Campos que me entristeceu quase tanto quanto o poema de Vicente de Carvalho; nela, o contista-cronista narra, na primeira pessoa, episódio em que se confessa autor de um furto, na verdade um pequenino furto, quando menino. Fiquei consternado. Da mesma época foi o conhecimento de um livro, tradução do inglês, decerto (acredito ter visto, bem mais tarde, um filme nele baseado), e cujo título seria O Homem Miraculoso (ou O Homem que Fazia Milagres?); faltavam-lhe capa e folha de rosto, não fiquei sabendo quem era o autor; mas foi uma leitura iniciadora. E que dizer dum livreco, também sem capa, intitulado A Boceta de Pandora? Era muito criança, mas tinha já algumas iniciações, e fiquei aturdido e indignado com a possibilidade de se publicar e distribuir, supostamente para a infância, literatura desse desavergonhamento.

Em Goiânia, li tudo o que pude encontrar sob os olhos. De Nietzsche (Ecce Homo, Assim Falava Zaratustra) a Érico Veríssimo (Clarissa, Gato Preto em Campo de Neve) e desses a... Suzana Flag. Minha Mãe pegou-me (até porque não o fazia escondido) lendo Meu Destino É Pecar, de um Nélson Rodrigues encapuzado no pseudônimo feminino. O romance era tão excitante que as últimas páginas vinham com um lacre. Mamãe teve a sabedoria de não me proibir a continuação. Apenas disse que não era literatura das mais indicadas para minha idade, mas, já que eu estava mesmo a folhas tantas... (Como voou o século XX! Poucas décadas depois, aquelas páginas proibidas poderiam ser consideradas literatura para mocinhas...)

Quanto à literatura própria ou impropriamente infantil, de tudo o que me veio às mãos, incluídas as grandes obras de prestigiosa extração européia, nada se comparava à de Monteiro Lobato, que, pelo meu voto esclarecidíssimo de menino devorador de livros, ficava ¾onde fica até hoje¾ no ápice da escala. (Tirante apenas as histórias que Mamãe, à beira de nosso leito, à noite, em Goiás, improvisava para nós cinco.)

Falta mencionar as histórias em quadrinhos. Lia tudo que era gibi, guri, globo juvenil mensal e o mais que havia nas bancas. Por influência delas meti-me a desenhar. No pátio do Dom Bosco e, mais tarde, em Manhumirim, na rua entre a casa de meus avós e o Pio XI, distraído rabiscava na areia ou na poeira os meus heróis prediletos. Tirei um zero em Matemática por debuxar em classe, e no caderno da matéria, uns traços femininos. Cheguei mesmo a idear e desenhar uma historieta em quadrinhos no estilo homérico das que lia...

Por que esta longa digressão? Porque todas essas leituras me refinaram e enraizaram o hábito de ler. E porque a poesia, afinal, não vive exclusivamente nos versos.

O Poeta Vulcânico

Segundo contacto lembrado com a poesia:  leitura do Tesouro da Juventude, em Manhumirim, Minas Gerais (a partir de 1947).  Então, o grande impacto foi Castro Alves, especialmente pel’“O Navio Negreiro”, que, de tanto ler, acabei decorando.  Aqui, em vez da tristeza do poema de Vicente, a euforia, o entusiasmo do moço baiano.

Comecei a desejar ser poeta.  Por imitação?  Claro que sim.  Meus Pais eram poetas.  Castro Alves, conhecimento recente, me acenava com um ideal de beleza que, aos poucos, me fui impondo por meta.  E por aí já se vê que não era só imitação;  havia também um desejo de realização.  Realização no plano espiritual, mais especificamente, no plano estético... sem falar no apelo político-social que é uma das características da poesia de Castro Alves.

As Primeiras Tentativas

Quando me dispus a tentar o poema, estava no 3.º ou 4.º ano ginasial do Colégio Pio XI, em Manhumirim.  Começava a estudar versificação, e isso prejudicou os meus primeiros ensaios:  não aprendera a diferença entre sílaba gramatical e sílaba métrica;  deste modo, ainda que o poema agradasse ao ouvido, não se revelava uniforme à contagem das sílabas, e eu então o violentava para “dar certo”.  Não dava, o resultado tinha de ser antimusical.

Guardo, dessa época, episódio dos mais pitorescos, narrado, aliás, em um de meus primeiros contos.  Meu professor de Português, um padre sisudo e, quanto posso avaliar retrospectivamente, bom conhecedor do idioma, iniciava-nos nas técnicas da versificação.  Tendo-nos explicado (tão bem quanto se verá...) a ciência da escansão; tendo-nos apresentado o alexandrino, e desvendado que se tratava de um verso de doze sílabas, passou à exemplificação.  Não foi feliz na escolha:  o verso “Era uma tarde triste, mas límpida e suave...” (do poema “A Boa Vista”, de Castro Alves) revelou-se refratário ao espartilho dodecassilábico.  Por mais que o mestre contasse e recontasse, o total dava treze sílabas.  Em desespero de causa, decidiu contar de trás pra diante:  “Su/a/ve e/lím/pi/da/mas/tris/te/tar/de u/ma era”.

Deu doze sílabas (“Ah! eu não disse?”).

De como a Geografia Pode Influir numa Vocação

Concluído o ginásio, meu Pai pôs-me num carro e rumamos para o Rio, onde deveria matricular-me num colégio.  Mas, passando por Leopoldina, onde estudara, lembrou-se dos velhos tempos, da boa tradição do Colégio Leopoldinense, e hesitou.  Lembrou-se também de que em Cataguases, cidade próxima, havia um colégio moderno (pela arquitetura de Niemeyer, pelo sistema de internato com apartamentos para dois ou três alunos, por um famoso painel de Portinari sobre a Inconfidência — painel que, por sinal, esteve em exposição em Brasília, há alguns anos, num dos salões do Congresso Nacional).  Fomos a Cataguases.  Acabei, porém, ficando em Leopoldina.  Hão de ter pesado na decisão (que deveria ter sido minha, mas que transferi, por não saber que opção tomar) as boas recordações da juventude que a cidade provocava em meu Pai.

Não sei que caminho teria tomado, se é que algum caminho haveria de tomar, quanto à poesia, caso tivesse ido imediatamente para o Rio.  A propósito da escolha entre Cataguases e Leopoldina, devo lembrar que a primeira foi um centro cultural de vanguarda na província de Minas (do que dava testemunho, desde logo, a modernidade do seu colégio), sendo de relevância para o Modernismo mineiro o grupo congregado em torno da revista Verde.  Já Leopoldina era conservadora e, ainda nos 50, infensa ao Modernismo.

Assim, na tranqüila cidade mineira que acolhe os ossos de Augusto dos Anjos, minha iniciação se fez com fulcro no Romantismo-Parnasianismo-Simbolismo, sendo Castro Alves e Bilac as duas influências avassaladoras dessa primeira fase, que me marcou para toda a vida.

Aprendi a metrificar.

Bom ou mau?

(Antes de continuar, preciso admitir, num parêntese, ser discutível pudesse a escolha de colégio e cidade influir tão determinantemente em minhas opções estéticas.  Como visto, o clima romântico-parnasiano-simbolista estava em minha pré-formação, combinava com o meu temperamento e com as inclinações que em mim já se revelavam.)

Tradição e Modernidade

O culto aos valores tradicionais não é incompatível com a modernidade. É, antes, ao que me parece, indispensável para um modernismo conseqüente, sabedor do que faz, e não meramente iconoclasta.

Sobejamente conhecida é a afirmação que podemos revestir nesta máxima: “É preciso conhecer para romper” — aplicável especialmente à literatura e às artes.  Modernismo e vanguarda não são sinônimos de ignorância...

É, aliás, a lição de Manuel Bandeira que o poeta, moderno embora, há de passar pelo verso tradicional, de haurir destreza nas técnicas e estéticas dos “clássicos” — isto é, dos grandes poetas do passado, qualquer que tenha sido a sua escola (permitam-me usar a palavra, cuja radical exclusão do vocabulário da crítica e da historiografia literária seria, creio, um equívoco e um empobrecimento).

Quase diria que, sem essa educação na arte antiga, grandes e inevitáveis prejuízos terá o poeta.  Mas tentarei ser coerente na aversão ao radicalismo...

Houve em nosso Modernismo poetas —dos maiores— insuficientemente versados na prática daquela arte, e mesmo poetas incapazes de metrificar (seria o caso de Oswald de Andrade). Em contrapartida, a maior parte dos nossos modernistas de categoria superior foram ou são exímios versejadores, familiarizados com todas as técnicas:  Bandeira, Mário de Andrade, Drummond, Cassiano Ricardo, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Vinícius... João Cabral também o será, tendo sua versificação raízes antes medievais do que renascentistas. Anote-se, ainda, que a Geração de 45, capitaneada pelo nosso Domingos Carvalho da Silva, e com exemplos num Lêdo Ivo, num Péricles Eugênio da Silva Ramos, adotou sempre atitude de não exclusão entre o antigo e o moderno, sabedora de que este se nutre daquele, e de que a veneração ao primeiro não é óbice à conquista do segundo — sendo-lhe, em geral, condição.

Por Quê Poesia?

Ponho de novo a questão:  por quê poesia?

Adolescente, senti-me fortemente chamado pela poesia.  Antecipei, há pouco, duas razões para isso:  imitação e desejo de realização.  Mas acho que poderia, deveria acrescentar algo.

Sou tentado a dizer que, surgidos inexplicavelmente em meu cerne, em minha alma, em meu espírito, embalavam-me movimentos, vibrações que, se bem que inefáveis, reclamavam expressão — uma exteriorização em forma que as reproduzisse por aproximação, ou melhor, uma recriação, que em algumas organizações assume a forma de música, em outras, uma forma plástica, e em mim assumiu a forma de poesia.  Isto, que a alguns pode soar fantasioso, a mim me parece bem próximo da verdade — e se me mostro, aqui, um tanto reticente é porque não sou capaz de levar às últimas conseqüências, isto é, à origem, a análise do processo.

Há, todavia, para o fenômeno poético, pelo menos outra explicação possível, e não posso omiti-la. Tratar-se-ia de simples catarse, válvula de escape à pressão, às vezes excessiva (principalmente na adolescência), de sentimentos de angústia ou de frustração.

Ora, a realidade é que não costumam ser encontrados na natureza os princípios puros, isolados.  A meu ver, todos os elementos enunciados, e talvez ainda outros que no momento me escapem, estão na raiz do fenômeno poético;  não obstante, apenas um o define:  aquele movimento, aquela vibração a que me referi — combinado, decerto, ao veículo de sua exteriorização, ao corpo poemático, este sim, mais fácil de estudar;  e que por isso mesmo, não raro, estudamos como quem, para conhecer a estrutura do pássaro, o dissecasse, assim lhe interrompendo o vôo e a vida. Corpo e alma, pois, que se manifestam juntos, inseparáveis;  conjunto, porém, de que a inteligência pode extrair, destilar o princípio vital.

Esse princípio, comum à literatura e às artes, é natural que o estudemos na sua manifestação física, quer dizer, no seu corpo — plástico, musical, verbal. Escamoteá-lo, para contornar a dificuldade, senão impossibilidade de o rastrear, ou negá-lo, por prévia convicção filosófica, leva fatalmente a distorções e necroses.

A esse princípio se tem dado o nome de inspiração.

Presença de Minas

Voltemos a Minas...

De Leopoldina carrego, eternas, duas marcas. Uma, literária:  a disciplina do verso, um certo universalismo poético (e aqui, já que falo de poesia, tenho de deixar inscritos os nomes de dois mestres — Geraldo de Vasconcellos Barcellos e Lydio Machado Bandeira de Mello).  A outra, vital: a das primeiras sérias definições afetivas fora do âmbito familiar — amizades indeléveis, a me ligar a outros jovens de então, professores, o povo, o próprio clima de uma cidade para sempre viva e dourada na memória.

Quando, ultimados os preparatórios, fui afinal para o Rio de Janeiro, levava na bagagem grande número de poemas e variada experiência nas técnicas versíficas predominantes até as vésperas do Modernismo (com este só me encontraria, de verdade, em solo carioca).  Ia, pois, —permita-se ao insistente aprendiz recordar ainda uma vez o grande mestre— iniciado na poesia e na vida.

Os Caminhos

A coletânea improvisada sob o título Amostragem Poética, de modo especial na primeira parte, “Balizas de um Caminho”, sintetiza o roteiro seguido por minha poesia, dos inícios românticos ao Modernismo.  Nela deixo representadas todas ou quase todas as fases.

Minhas primeiras tentativas de poema resultaram em fracasso ou, no melhor dos casos, em medíocre prosa ritmada, de que me lembra uma única frase: “Da cachoeira ouvia-se ao longe o rugido monótono”... “Um Olhar”, de feição romântico-simbolista, com evidente ascendência castro-alvina, foi o primeiro poema bem-sucedido.

“Utopia” mantém o tom romântico.

“Navegação”, reescrito após 17 anos, soa-me parnasiano-simbolista.

A leitura dos clássicos côa-se pelo tom e pela linguagem de “Dia Após Noite”.

Já “O Cemitério de Elefantes” é nitidamente parnasiano.

“As Cigarras Estão Cantando Novamente”, polimétrico, é um marco na difícil transição para o verso livre, que já considero presente em “O Tocador de Realejo”.

Em “Labirinto”, novamente, influência dos clássicos do idioma, desta vez com boa dose de afetação.

Nossa popular quadrinha setissilábica está representada em “Trova”.

Da segunda parte, “Alguns Poemas sobre Poesia”,  “Gênesis” é ainda romântico, no sentido mais amplo da palavra;  seus eneassílabos parecem-me devedores daqueles outros, infinitamente maiores, d’A Cinza das Horas, de Manuel Bandeira:



                     Eu faço versos como quem chora

                     De desalento... de desencanto...

                     Fecha o meu livro, se por agora

                     Não tens motivo nenhum de pranto ,



com aquele final esplêndido:



                     —Eu faço versos como quem morre.



                                 “Fácil” exemplifica a fase violão-de-rua.

“Torre de Babel” toma, adaptando-os ou não, quase todos os seus versos de outros poetas.

Em “Babélica” e em “Tangente”, a presença do Concretismo, criticamente considerado e livremente utilizado, não como imposição vanguardeira, mas como uma caixa a mais de instrumentos expressivos. Em “(A)mar(o)”, o título é uma construção sintética, em código, cujo  desdobramento e decifração vêm no último verso.

“Telex” e “Multímoda” são duas meditações acerca do fenômeno poético, a primeira uma composição em verso livre, a segunda um soneto decassilábico, ícones da medida velha e da medida nova que alternam, sem altercar, em minha poesia.

Finalmente, na terceira parte, “Livre Escolha”, em que se confirma essa alternância, reúno alguns poemas de minha preferência.

Submeto-os todos, bem como as observações que tenho avançado, ao debate e à crítica.

Com a palavra os amigos.


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