segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Uma explosão controlada


Anderson Braga Horta
In: Criadores de Mantras; Ensaios e Conferências.
Thesaurus, Brasília, 2007.


A meus mestres e condiscípulos de Leopoldina

Fui cedo iniciado nos mistérios da quarta dimensão que é o universo maravilhoso da palavra escrita. E nesse universo transtemporal e transmaterial aprendi a habitar simultaneamente mundos paralelos e a ser antípoda de mim mesmo. Para o menino imaginativo, cada livro era uma aventura; tornei-me um aventureiro insaciável. Naturalmente, muitas foram as leituras marcantes dessa fase: certa página de Humberto de Campos, um poema de Vicente de Carvalho, quilos de histórias em quadrinhos, romances, um ou dois filósofos abstrusos; mas, acima de todas, a obra infantil de Monteiro Lobato. Não pretendo me deter, contudo, nessas primeiríssimas e, de certo modo, passivas explorações literárias; quero antes falar de um dos livros que mais fortemente me ajudaram a estruturar uma experiência então nova para mim: a do fazer poético.


Anacronismo Fecundo


Trata-se de um dos mais antigos livros que conservo: data de 1951 a dedicatória que lhe apôs meu Pai. Não foi a primeira influência. Poetas inaugurais foram-me —além de meus próprios Pais— os representantes maiores de nossas gerações românticas, Castro Alves à frente. (Sobre estes, escrevi já um ou dois depoimentos.) Também não foi a última. Seguiram-se-lhe Alphonsus, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos (acerca dos quais tenho também escrito algo), sem falar no Camões, no Antero, no Guerra Junqueiro; e, num segundo momento de minha formação, os modernistas – Bandeira, Menotti, Drummond, Jorge de Lima, Cecília, Henriqueta. E Pessoa. Antes e depois dele, em suma, arrolaria ainda um bom número de antigos e modernos, clássicos e românticos, gregos e troianos (especialmente se portugueses ou brasileiros...). Elementos, todos eles, do meu caos particular (“que um dia, quem sabe, organizarei em águas, terras e céus” — atrevo-me a esperar, num poema de Cronoscópio).

O livro a que tenho me referido é uma amarelada brochura editada em 1949 (23.ª ed.) pela Francisco Alves: Poesias, de Olavo Bilac.

Alguém há de pensar, e talvez dizer, que Bilac, mais Castro Alves, enfim românticos, parnasianos, simbolistas e outras antiguidades —como influência literária— é dose excessiva de anacronismo para os anos cinqüenta, na culta cidade de Leopoldina, vizinha da verde Cataguases. Peço licença para discordar. Para mim, pessoalmente, essa formação tradicional (bastante mineira, penso eu, e com isto não reduzo o “espírito de Minas” a um obscuro conservantismo; ao contrário, tenho em mente o lastro que orienta o vôo livre de pássaros que se chamem Henriqueta Lisboa, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade), essa formação foi um longo e amoroso aprendizado. Era um mundo organizado, tudo no seu lugar; um mundo medido, comedido, de que proclamo saudade noutro poema do Cronoscópio (“Auto-Elegia”), bem como num soneto de Incomunicação (“Naquele Tempo”) de que transcrevo o terceto final:


“Perdi o ritmo dos poetas antigos,

perdi a música dos poetas antigos,

hoje sou duro e seco e sem romantismo.”;


não este caos em que estamos mergulhados (caos, todavia, de que sairá um cosmos, “um ordenado universo” — ouso novamente augurar, na citada “Auto-Elegia”). Não um mundo a que devêssemos pretender retornar, isso não; mas um mundo de onde podemos talvez trazer algum instrumento que nos oriente neste caos, nos ajude a compreendê-lo e, afinal, transcendê-lo, na construção de uma terceira e mais alta realidade.


Paixão e Rigor



Como disse, Castro Alves está no limiar de minha experiência poética. À semelhança de seu verbo genial procurei persistentemente plasmar-me, sob o influxo daquela exaltação generosa e brilhante. À sua lição de exuberância veio contrapor Bilac uma lição de rigor. (Não que faltasse ao romântico o senso de composição, ou ao segundo servisse a carapuça de mármore genericamente talhada para os “parnasianos”. Apenas extremo, em um e outro, características maiores.)

Ardente mas contida emoção. Exaltação e rigor, rigorosa paixão. Caos e cosmos. Acho que está aí o segredo de toda grande poesia, de toda grande arte. Bilac foi um de meus mestres nisto, que aprendi ao menos teoricamente: "A poesia é uma explosão controlada." (Seja-me perdoada mais esta autocitação.)

Vê-se logo que não me refiro ao Bilac da “Profissão de Fé”, nem ao das Panóplias, ainda excessivamente canônico, mas ao lírico, ao amoroso, ao erótico sem “apelações” de Via-Láctea, Sarças de Fogo e Alma Inquieta, ao épico d’O Caçador de Esmeraldas, ao contemplativo de Tarde.

A “Profissão de Fé” é um hino de amor à Forma, ao “Estylo”. O soneto “A um Poeta” (Tarde) é uma conclamação ao trabalho beneditino, paciente, solitário, perseverante, incansável, a fim de que



“Não se mostre na fábrica o suplício

Do mestre. E, natural, o efeito agrade,

Sem lembrar os andaimes do edifício:



Porque a Beleza, gêmea da Verdade,

Arte pura, inimiga do artifício,

É a força e a graça na simplicidade.”



Ambos os poemas se prestam excelentemente à ilustração do ideário parnasiano. Exemplificam bem o rigor formal, a ascese do poeta. Onde, porém, consegue o equilíbrio entre as forças polares aqui chamadas paixão e rigor é em poemas como O Caçador de Esmeraldas, cuja exaltação verbal muito o aproxima do grande romântico; no soneto a Bocage (“mestre querido”), canto de fidelidade à poesia e à língua portuguesa (também vigorosamente celebrada no soneto deste título); nos demais sonetos da Via-Láctea, destacadamente o famosíssimo n.º XIII — “Ora (direis) ouvir estrelas!” e o n.º XXIX — “Por tanto tempo, desvairado e aflito”, de minha predileção; em “A Avenida das Lágrimas”, de linguagem e efusão também românticas; e em inúmeras outras composições, muitas das quais vou arrolando aqui, para lembrar o volume dos poemas de nível excepcional deixados pelo velho Bilac: “O Julgamento de Frinéia”, “Súplica”, “Beijo Eterno”, “Pomba e Chacal”, “Nel Mezzo del Camin...”, “Inania Verba, “Virgens Mortas” , “Tercetos”, “In Extremis”, “Dentro da Noite”, “Campo Santo”, “Hino à Tarde”, “O Vale”, “As Estrelas”, “As Ondas”, “Microcosmo”, “Ressurreição”, “Benedicite!”, “Respostas na Sombra”, “Natal”, “Fogo-Fátuo”, “Perfeição”, “Um Beijo”; “Criação”, “Semper Impendet”, “Assombração”, “Diamante Negro”, “O Cometa”, “Diálogo”, “Avatara”, “Oração a Cibele”, “Sinfonia”.


No Limiar do Mistério


A quando e quando, rende-se o poeta à magia da aliterante música simbolista, como neste terceto magistral de “A Tentação de Xenócrates”:


“Tíbios flautins finíssimos gritavam;

E, as curvas harpas de ouro acompanhando,

Crótalos claros de metal cantavam...”


Notas simbolistas creio ver, por exemplo, em “Surdina” (Alma Inquieta) e em mais de um dos intensos sonetos de que está referta a Tarde do poeta. Cito a “Cantilena”, em versos de quatorze sílabas, e os alexandrinos de “Vila Rica” e “Os Sinos” (belíssimos).

Lembra-nos, finalmente, o clima simbolista a sensação de umbral que nos transmitem alguns dos sonetos mais altos da fase derradeira. Escolho para representá-la este magnífico “Introibo!”:



“Sinto às vezes, à noite, o invisível cortejo

De outras vidas, num caos de clarões e gemidos:

Vago tropel, voejar confuso, hálito e beijo

De causas sem figura e seres escondidos...



Miserável, percebo, em tortura e desejo,

Um perfume, um sabor, um tato incompreendidos,

E vozes que não ouço, e cores que não vejo,

Um mundo superior aos meus cinco sentidos.



Ardo, aspiro, por ver, por saber, longe, acima,

Fora de mim, além da dúvida e do espanto!

E na sideração, que, um dia, me redima,



Liberto flutuarei, feliz, no seio etéreo,

E, ó Morte, rolarei no teu piedoso manto,

Para o deslumbramento augusto do mistério!”



Concluindo, confesso que as Poesias de Bilac foram-me, em fundo e forma —como, à outra mão, o estro de Castro Alves—, uma das mais vívidas revelações e uma exigente escola, que reconheço e proclamo, e que —associada sempre à lembrança de Leopoldina, estrada de Damasco da minha poesia— me é grato agora recordar e reviver.

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